“Sempre a neve suja, os montes de neve que parecem podres, com traços negros, incrustações de detritos. A poeira branca que às vezes se descola da casca do céu, em pequenos pacotes, como o gesso de um teto, não consegue cobrir aquela imundice” (p. 86)

    Um dos grandes prazeres de um leitor: ler pela primeira vez um escritor e gostar muito. Mas muito mesmo. Isso é raro, cada vez mais difícil, pois o leitor é um ser em constante formação, mas também possui uma base literária, um alicerce que o faz escolher ou não um livro, de acordo com o universo literário a qual pertence.

    Decidi por Georges Simenon porque gostei muito do título do livro e mais ainda quando vi a capa que contém uma foto bela, interessante.

    Em A Neve Estava Suja fui apresentada a Fred, um jovem sem rumo na vida, que vive na França, no período da Segunda Guerra Mundial, mora num prostíbulo porque sua mãe é a dona do lugar e comete alguns crimes porque… por quê?

    O próprio Fred quer descobrir respostas e brinca com a vida, acredita que ela pode lhe dar certos “brindes”, que também podemos chamar de destino, sorte ou azar.

    “Frank não tem medo. Não se trata de medo. É infinitamente mais sutil. É uma brincadeira que ele inventou, como, quando criança, inventava brincadeiras que só ele entendia. Quase sempre eram de manhã, na cama, enquanto a sra. Porse preparava o café da manhã, e, de preferência, quando fazia sol. De olhos fechados, pensava, por exemplo:
    – Mosca!
    Depois entreabria as pálpebras, olhando apenas para uma porção determinada da tapeçaria. Se houvesse uma mosca ganhava.
    Agora poderia dizer:
    – Destino!” (p 124)

    Ele frequentava um bar próximo à casa dele. Um bar habitado por todos os tipos de gente, moradores do bairro, bandidos e oficiais do exército. É neste local que suas ideias começam a se transformam em ações que, num ritmo acelerado, envolvem diversas pessoas do bairro onde ele mora. Algumas pessoas más, outras boas, outras ainda que ele tenta alucinadamente desvendar, como se fosse alcançar o momento de ser possível mudar o seu destino.

    Fred conhece uma garota, a Sissy, que se apaixona perdidamente por ele. Porém, o olhar que ele tem sobre ela é de uma garota como todas as outras que conheceu: dramática demais, carinhosa demais, boba demais. Ele tem planos com a sissy, mas nada parecido com o sonho de amor dela. O plano, (pelo destino, sorte ou azar) não sai como o planejado, que o deixa mais intrigado ainda com a sua própria vida e com as pessoas que participam direta e indiretamente dela.

    É um pouco caótico – e assim deve ser – a apresentação de cada personagem. Alguns o leitor conhece exatamente no momento do ato do protagonista. Outros aparecem em doses homeopáticas, para deixar o leitor naquele delicioso estado de suspense: mas e ele? por que está ali? por que olha? por que não age?

    A narrativa de Simenon apresenta uma obra quase invisível ao plano histórico ao qual pertence. Estamos falando da Segunda Guerra Mundial, de um bairro frequentado por oficiais do exército que o usam para aliviar a tensão da guerra, porém há uma tensão interna e muito verdadeira em cada personagem que não relaciona com a guerra. Isso não é dito, não é falado, mas fica extremamente evidente em cada ação da história.

    Talvez pelo seu ritmo, a forma como cada frase segue a outra. E mais uma. Frases curtas, intensas que em pequenas e perfeitas palavras no lugar certo criam um ar turvo no ambiente da história. Este ar que interpretamos com o mesmo peso que deve ser o ar de uma guerra mundial. Ou seja, por mais que o escritor descreva personagens alienados à sociedade política a qual pertencem, o leitor por saber desta informação na orelha do livro e em pequenas nuances do texto, aumenta consideravelmente a sua tensão durante a leitura. E isso é incrível.

    Há bons personagens na história, que dividida em 3 partes, mantém o foco em Fred, o protagonista, mas também abre espaço para outros personagens se mostrarem melhores ou piores que o capítulo anterior.

    Durante a leitura imaginei que eu estava lendo um narrador que iria me enganar no final, pois o formato das frases produz um efeito parecido com o fluxo de consciência, que mistura o pensamento do narrador com o do personagem. Adorei ter essa dúvida, pois me deixou mais atenta às nuances da narração e pode ter sido por isso que gostei tanto do estilo de George Simenon.

    Escrever bem é para poucos; escrever com estilo – e bem – é mais difícil ainda. Georges Simenon foi um escrito belga de língua francesa, escreveu 192 romances e 158 novelas, além de biografias e mais outras tantas obras com mais de 27 pseudônimos diferentes. Ele escreveu bem, com estilo e numa quantidade absurda. Um escritor para ser lido e admirado.

    “Não há mais cidade, não há mais Lotte, não há mais Minna, mais ninguém, mais bondes na esquina, mais cinema, mais universo. Não há mais nada, salvo um vazio que sobe, uma angústia que faz o suor jorrar em suas têmporas e que o obriga a levar a mão ao lado esquerdo do peito.” (p. 95)

    Da história de Fred, o que ficou foi a trajetória em tentar entender a mente de um assassino que vive num subúrbio francês. Não há respostas, mas o autor nos dá um excelente exemplo de como pode ser. Os laços de amizade, os relacionamentos da história são complicados de entender, pois quando tento usar a palavra amigo, percebo que as relações de amizade não são honestas. Se tento usar a palavra homem, a palavra dignidade, vergonha, medo, mentira; nada parece encaixar, como se todas elas fossem uma única palavra, uma única força e ao mesmo tempo fraqueza, que caracteriza os personagens do começo ao fim.

    Resenha em vídeo no canal Livro&Café:

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