Em meio aos traços satíricos e à profundidade psicológica tão característicos de Machado de Assis, emerge a narrativa pungente de “Pai contra mãe”. No conto, o mestre da literatura brasileira retrata não apenas a dura realidade da escravidão no Brasil do século XIX, mas também as complexidades morais e emocionais que permeiam as relações humanas sob tal regime. “Pai contra mãe” não apenas revela as injustiças do passado, mas também nos obriga a refletir sobre as reverberações dessas injustiças em nossas próprias vidas e sociedades contemporâneas.

    Em alguns contos tantas coisas acontecem que a leitura termina e a sensação é de ter lido um romance todo, como se a brevidade do conto conseguisse transgredir para um tempo e espaço muito longo, que leva o leitor para um mergulho tão profundo ao ponto de ser impossível saber se lá fora é dia ou noite. Pai contra Mãe, um conto de Machado de Assis publicado em 1906 tem todo esse poder.

    Quando terminei a leitura de “Pai contra mãe”, eu sabia que tinha acabado de ler uma obra muito importante, mas o choque final não aconteceu nesse momento. Passada algumas horas é que tive toda a soberania da literatura transformando o meu pensamento, conectando a história por um caminho que não imaginei. Foi intenso como saborear o agridoce pela primeira vez. Especial como ganhar um presente e dolorido como deve ser uma facada no peito. É preciso respirar fundo.

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    No conto somos apresentados a um personagem que possui uma profissão terrível, ele é um caçador de escravos fugidos, o que o torna muito duvidoso. Por outro lado, ele é também um homem que se sente na obrigação de alimentar sua família, composta por Clara (esposa), Tia Mônica e uma criança que, ainda na barriga, representa uma possível redenção do personagem para uma profissão mais descente.

    O nome dele é Cândido Neves, um sujeito que não consegue se enquadrar nos empregos formais: hora para chegar, hora para sair, a rotina, etc, tudo isso é algo impossível de ser cumprido, restando então, a profissão de tirar a liberdade do outro, mesmo com os insistentes avisos de Tia Mônica sobre os perigos do trabalho informal.

    O que era esperado realmente acontece. A profissão de Candinho se torna tão comum na mesma medida que os escravos aprendem a não serem capturados com tanta facilidade. A fome atinge a família quando o bebê nasce, no mesmo período em que não há mais dinheiro para pagar o aluguel. E por conselho de Tia Mônica, fica combinado, com muita tristeza, que a criança será levada para a “Roda dos enjeitados”.

    Mas como nem tudo na vida é desespero e crueldade para Candinho, quando ele está a caminho de entregar o seu filho, o acaso lhe dá uma chance: uma escrava fugida, que vale muito dinheiro, é reconhecida por ele. Desespero e crueldade para a escrava, uma possível alegria para Candinho que assim não precisará abandonar o filho.

    E então acontece um dos momentos mais difíceis do conto, o leitor que sentia até então uma certa compaixão com o personagem principal, transforma tudo isso em desespero, dor e medo, assim como a escrava fugida.

    Delicadeza e crueldade

    Para o final, Machado de Assis embrulha para o leitor um pacote de contradições ao mesmo tempo delicadas e cruéis. Se durante o conto é possível sentir empatia por Candinho, é ele mesmo que provoca o ódio. Se ele, tenta buscar a liberdade em não aceitar os empregos tradicionais, ele possui uma profissão que tira a liberdade também. E quando o opressor tem mais regalias sociais e políticas que o oprimido é ele que vence, é ele que consegue um olhar distante para a história do outro e a própria história também.

    Se há um conto onde conseguimos ver com clareza toda a genialidade de Machado de Assis, Pai contra Mãe é um bom exemplo, pois, a história perpetua na vida do leitor, na vida da sociedade, na vida do mundo, com toda a frieza e crueldade de um espelho.

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    O conto A Cartomante, de Machado de Assis: seja enganado e fique feliz, menos o Vilela

    Leia o conto “Pai contra mãe” aqui

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    4 Comentários

    1. Francine Ramos on

      Olá, José!
      Machado de Assis faz isso mesmo com a gente. Tudo que leio dele me coloca em uma profunda reflexão. Maravilhoso!

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