A Bela e a Fera é uma coletânea de contos escritos por Clarice Lispector entre 1940 e 1977. Ao todo, temos oito contos que revelam personagens mulheres tentando buscar algum tipo de sentido em suas vidas. Algumas trágicas, outras banais, outras simplesmente comuns e que, como diz o título, põe em dúvida sobre quem é a bela e quem é a fera.

    História Interrompida

    O primeiro conto é o “História Interrompida”, escrito em outubro de 1940. É sobre uma mulher em reflexão sobre o homem que ela ama. Ele é apenas chamado de “W.” e, conforme o título, vamos conhecer a interrupção da história do casal. Por motivos diferentes, mas que levam o leitor a pensar em medo e insegurança.

    Sendo a personagem uma mulher imatura, de apenas vinte e poucos anos, o final, que vem de repente, faz o leitor repensar tudo que leu, entendeu, sentiu e interpretou.

    Gertrudes pede um conselho

    O segundo conto tem um título delicioso “Gertrudes pede um conselho”, parece nome de fábulas antigas. Este, escrito em 1941, apresenta a personagem Tuda, uma adolescente perdida em seus próprios devaneios, que decide procurar uma psicóloga para ouvir algo sobre o que é a felicidade. Antes, durante e depois da visita a personagem se perde – e leva o leitor junto – a descobrir e redescobrir a tal, suposta, felicidade.

    “As lágrimas sucediam-se, acompanhando os olhos inchados, um estado de suave convalescência, de aquiescência a tudo. Surpreendia a todos com sua doçura e transparência e, ainda mais, forçava uma leveza de passarinho. Dava esmolas a todos os pobres, cm a graça de quem joga flores” (p. 13)

    Gostar de Clarice é fácil porque o texto dela sempre busca as contradições humanas. Há tristeza e também felicidade numa única frase. Com uma leitura mais atenta percebe-se que Lispector está no caminho do meio, que feliz ou triste é difícil a constância, o permanecer em pé, forte e segura. Então, ela pode ser considerada popular e erudita, pois todo leitor é uma pessoa que busca: um conselho, uma ideia, uma visão diferente do mundo ou a dura verdade das entrelinhas. No conto “Gertrudes pede um conselho”, Tuda é o leitor, a psicóloga Clarice.

    “Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobrenada e que não é o vital; o “mal de muitos” é consolo, mas não é solução” (p. 16)

    Obsessão

    Um dos melhores contos do livro, sem dúvida, é “Obsessão” que, também escrito em 1941, mostra uma personagem muito diferente de Tuda, mais madura e com questões pessoais mais complexas a descobrir, talvez porque, diferente de Tuda, ela demorou muito tempo para olhar para si mesma. É um conto muito difícil e extremamente dramático porque não é simples suportar a verdade de Cristina, nossa protagonista, que conta em detalhes tão profundos e intensos os passos de sua inquietação que acaba se transformando numa obsessão. É preciso ter cuidado. Ao mesmo tempo que aceitamos a protagonista, ela nos causa raiva e depois também uma identificação que nos faz perguntas, tocando nas feridas dos tantos caminhos e encruzilhadas da vida. A obsessão está tão perto e tão simples de ser dominada e perdida.

    “Tudo lhe perdoo, tudo perdoo aos que não sabem se prender, aos que se fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não justificasse” (p. 28)

    O conto seguinte vem com um acalento no coração do leitor, apesar do título emblemático, Delírio, escrito em 1940, é uma gostosa aventura do cotidiano com um protagonista que não sabe se sonha ou se vive, mas ele é um escritor:

    “Ele para, de súbito pensativo. E principalmente se ela soubesse que esforço lhe custava escrever. Quando começava, todas as suas fibras eriçavam-se, irritadas e magníficas. E enquanto não cobria o papel com suas letras nervosas, enquanto não sentia que elas eram o seu prolongamento, não cessava, esgotando-se até o fim” (p. 52)

    A fuga

    Na sequência temos o conto A Fuga, também de 1940. É belíssimo pois conta sobre uma mulher que passeia na chuva pelo Rio de Janeiro, pensando em sua vida de mulher casada. A problemática se dá porque ela não se sente mulher – primeiramente – ela só aprendeu a ser mulher casada. Então, as reflexões da personagem revelam uma pequena construção interna da personagem em querer se livrar de uma situação social que foi lhe imposta: ser uma mulher casada. A Fuga é um conto feminista.

    “Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituíam-na quase inteira em si mesma – primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam” (p. 53)

    “Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la” (p. 55)

    Mais Dois Bêbados

    O penúltimo conto chama-se Mais Dois Bêbados e foi o que menos me atraiu, mas o ponto alto fica para uma cena com ratos. É tão nojento e ao mesmo tempo genial. Clarice Lispector gosta de bichos estranhos! (quem leu A Paixão Segundo G.H. sabe por quê).

    A Bela e a Fera

    O último conto, que dá nome ao livro, traz um profundo embate social entre uma madame e um mendigo. Ela, a protagonista, pela primeira vez pensa em sua vida a partir do pedido do mendigo. Ele quer dinheiro, tem uma ferida enorme na perna e por isso ela relacionada às suas próprias feridas, muitas ocasionadas pelo excesso de dinheiro que, num contraponto com o mendigo e sua ferida, é o que lhe falta.

    No conjunto, percebe-se a intenção desse volume de contos em apresentar mulheres muito diferente, mas iguais na busca de alguma solução para um problema existencial que é, por natureza, complexo. Em todos eles cabe a pergunta: quem é a bela e quem é a fera? Clarice é bela e fera.

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