Poética (Ana Cristina Cesar) não é só um livro, é um acontecimento na vida!

    Alguns livros são mesmo difíceis, mas a partir da dificuldade literária é possível construir um diálogo interessante sobre a própria condição do livro, do escritor e o seu papel na sociedade. É assim que o encontro Leia Mulheres de Sorocaba, a qual sou mediadora, aconteceu. Porque entre as dez pessoas presentes no encontro, em comum, havia a certeza sobre a dificuldade que foi ler Poética, livro da brasileira Ana Cristina Cesar (1952 – 1983), poeta, escritora e tradutora.

    Ana Cristina Cesar fez parte do grupo conhecido como Geração Mimeógrafo (amei tanto esse nome!), que consistia na produção independente de material literário, que não fazia parte de panelinhas com aval de grandes editoras da época. Essa novidade cultural aconteceu logo após o movimento Tropicália, que, em função da censura da ditadura, fez dos artistas também produtores de conteúdos alternativos, com o uso do mimeógrafo, literalmente.

    A poesia de Ana Cristina Cesar também é chamada de poesia marginal, porque também vem por caminhos diferentes dos convencionais e que, mais uma vez, não fez parte das grandes editoras. Assim, o que a poeta conseguiu realizar em seu pouco tempo de vida (ela cometeu suicídio aos 31 anos, pulou da janela da casa de seus pais, em Copacabana) é algo muito pungente e particular, pois se constrói no íntimo da autora, de um jeito muito fragmentado e difícil de mergulhar.

    Foi difícil ler Ana Cristina Cesar

    Então, quando comecei a ler o livro Poética, fiquei bastante preocupada porque as primeiras poesias, excertos, pensamentos soltos, sei lá como devemos chamar o que ela fez (Cenas de Abril, 1979), não me causou aquele belo impacto que se espera na poesia. Eu, fã de poesias modernas e por acreditar quer seria fácil amar a poeta, fui pega de surpresa por ela mesmo. É como se as primeiras dificuldades na leitura fosse um jeito da própria autora avisar que nada é fácil nesta vida, meu bem.

    Mas graças à internet, expus a minha dificuldade e preocupação sobre a leitura do livro Poética e eis que aparece a Tati Dantas, do blog/canal País Nas Entrelinhas para acalentar o meu coração: “Eu acho a ordem desse livro impossível de ser lida (…) sempre recomendo começar por Inéditos e Dispersos, acho mais tranquilo de ler o resto depois…”

    A Tati é psicóloga e pesquisadora na área de literatura e psicanálise. A partir do comentário dela, eu fiquei mais atenta à leitura do livro, segui a sua recomendação e aproveitei também para ler um artigo que ela escreveu para o Leia Mulheres que o considero hoje, como essencial, para ser possível mergulhar na obra da autora: A Lógica Circundante de Ana Cristina Cesar, leia, leia, leia!!!

    Mas, então, como ler a obra de Ana Cristina Cesar?

    A partir das dicas da Tati Dantas e da minha experiência com o livro, montei uma “ordem” de leitura para ser possível um mergulho mais tranquilo na obra da autora, a entender um pouco de seus processos criativos e também para perceber a evolução da artista. Mas é só uma ideia, pois o melhor jeito continua e sempre será, muito particular para cada leitor.

    1. Inéditos e Dispersos
    2. Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta rosa
    3. Visita à Oficina
    4. A Teus Pés
    5. Luvas de Pelica
    6. Correspondência Completa
    7. Cenas de Abril

    O clube de leitura Leia Mulheres

    No dia 27 de março de 2016 aconteceu o Clube de Leitura Leia Mulheres aqui em Sorocaba. No caminho até o local do encontro, eu fiquei pensando, e realmente preocupada, em como seria a conversa sobre o livro Poética, pois, com os meus percalços para ler a escritora, imaginei a dificuldade para fazer o assunto render, porém, também pensei que se os convidados tivessem as mesmas dificuldades que eu, seria um caminho de iniciar o bate-papo, para tentar entender a nós mesmos e, assim, construir um diálogo sobre a obra da autora que, sim, é realmente muito especial; que, sim, é difícil (principalmente ao ler na ordem do livro Poética); que, sim, é marginal; que, sim, é linda e estranha; que, sim, é original.

    O encontro, como todos os outros, foi muito bom, divertido e profundo. Cada pessoa trouxe um pouquinho do que compreendeu, mas, principalmente, ali no encontro, ninguém ficou com medo ou vergonha de dizer que não entendeu muita coisa e, a partir desse desentendimento coletivo, construímos uma conversa muito rica, que atingiu o nosso comportamento como leitores, o desejo comum de querer gostar e entender uma nova escritora.

    Muitas questões, então, foram levantadas. Deixo aqui algumas que mais me chamaram a atenção:

    • É interessante saber das referências da autora, Ana C. tem muitas. Um exemplo: Drummond, mas há muitas referências de escritores/artistas menos conhecidos, então é preciso pesquisar;
    • É necessário desprender-se dos conceitos que nos amarram a definir o que é poesia;
    • É normal ler uma poesia e não se conectar a ela, como se as palavras não te dissessem nada (o que é um engano);
    • A poesia marginal se coloca em um espaço muito puro, pois não se preocupa a agradar ninguém;
    • Ana C. Cesar possui uma obra que desconstrói o leitor;
    • Na poesia fragmentada, a compreensão, mesmo que uma pequena luz, pode vir tempos depois da leitura;
    • É legal ler em voz alta e ouvir pessoas lendo a sua poesia preferida.

    A minha opinião, hoje, sobre Ana C. Cesar

    Ana C. Cesar é uma escritora que compreendo pouco, mas também me pego pensando na necessidade de compreender a poesia, porque é como música, você simplesmente escuta/lê e gosta. Pode ser assim.

    Eu demorei mesmo para gostar da Ana C. Cesar, mas a primeira poesia dela que me tocou com mais profundidade, está na página 87, do livro Poética, que faz parte de Aos Teus Pés, livro lançado em 1982. Não parece um poema, é como se fosse um excerto de alguma coisa e aí está uma característica da Ana C.: os fragmentos, pois é difícil saber onde começa e onde termina a sua poesia. Em algumas, a sensação é que ela te tira da contemplação do ritmo da poesia e te dá um choque, de realidade, incompreensão, um susto mesmo. Se ela fez isso de propósito, não é possível saber, mas é a certeza do quanto a sua poesia vem para desconstruir o leitor, desconstruir o cotidiano. A obra dela é toda feita do cotidiano e de um jeito muito atemporal.

    EXTERIOR. DIA. Trocando minha pura indiscrição pela tua história bem datada. Meus arroubos pela tua conjuntura. MAR, AZUL, CAVERNAS, CAMPOS E TROVÕES. Me encosto contra a mureta do bondinho e choro. Pego um táxi que atravessa vários túneis da cidade. Canto o motorista. Driblo a minha fé. Os jornais não convocam para a guerra. Torça, filho, torça, mesmo longe, na distância de quem ama e se sabe um traidor. Tome bitter no velho pub da esquina, mas pensando em mim entre um flash e outro de felicidade. Te amo estranha, esquiva, como outras cenas mixadas ao sabor do teu amor.”

    (p. 86, Poética, Aos Teus Pés)

    Ao ler Ana C., a infinidade de interpretações, análises, sensações, certeza e perguntas vão acontecer, isso é algo possível quando o escritor atinge o ápice de sua própria arte, com grande possibilidade de se tornar imortal. Assim, acredito que vai passar muitos anos, séculos, arrisco dizer, e a poesia marginal, da simplicidade do mimeógrafo, desse cotidiano fragmentado, tão particular, que assusta, ainda vai colocar qualquer pessoa que contempla a arte, aos teus pés, Ana Cristina Cesar.

    “Vai-se o inútil salmo, o inútil amor
    em cada começo o fio e a agulha
    Em cada som um nome só: fim”

    (inconfissões, 28.10.68)

    Que saber mais sobre Poética (Ana Cristina Cesar)? Veja o vídeo no canal Livro&Café:

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    1 comentário

    1. Ana Cristina Cesar, nossa bendita poeta maldita.
      Valeu Francine! A ordem de leitura foi muito útil.

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