Em um dos romances de Josué Guimarães, o velho Camilo Mortágua entra em um cinema para assistir a um filme sobre Cleópatra. Estupefato, quando a tela se ilumina, o que ele vê não é a história da rainha do Egito, é a sua própria infância representada. Engasgando de emoção, ele se assiste menino, reconhece no filme o casarão em que cresceu, as brincadeiras, os amigos. Ele nem sabe direito o que sentir. Ninguém mais no cinema está vendo o mesmo que ele. Ninguém mais se perdeu na mesma magia e na nostalgia de se assistir assim.

    Começo o texto desse modo porque talvez só o Camilo me entenderia. O que ele sentiu não se explica em textos. O que eu senti hoje também não. Depois de mais de 200 apresentações, finalmente pude assistir “As fantásticas aventuras de um menino que lia livros”. A peça é baseada em um texto meu, de 2010, adaptado para o teatro por Anderson Balhero e Tuta Camargo, da companhia Destemperados.

    Hoje, a apresentação foi em Soledade. Cheguei quieto, sozinho, incólume. Me misturei às crianças sem me apresentar, sem dizer nada. Quando o espetáculo começou, enquanto os risos explodiam ao meu redor, meus olhos se enchiam d’água. Em parte por sentir meu texto vivo, é claro, mas principalmente por assistir a minha vida ser representada. No palco, eu pude reconhecer a minha infância, as aventuras contadas pelos meus pais, escutadas em fitas k7, lidas nos livros. Isso nem a companhia sabia: que o meu texto não era ficcional, era autobiográfico, era um depoimento profundo e simples de como fui enfeitiçado, tal qual nas histórias de fadas.

    E quem me lançou o feitiço foi a própria Literatura. Ao ver a peça, reforcei minha crença de que se deuses existem, eles o fazem através da Arte. O que eu conquistei, o que eu me tornei, toda glória (e algum tormento, é verdade) só me foram possíveis porque em algum momento a Literatura me escolheu. E foi esse momento que eu pude ver representado hoje.

    E vi ainda mais, vi minha vida se entrelaçando com a do Anderson e a do Tuta. Nas brincadeiras da infância deles, em uma declaração linda de amor ao teatro e, portanto, à Arte, na escolha dos livros e do poema que fazem parte do espetáculo. No final, também pude ver as escolas receberem meu livro, “A menina que podia voar”, enquanto os alunos gritavam “Eu quero! Eu quero!”. E isso sem que ninguém soubesse que eu estava ali, sorrindo feito bobo. Grato como nunca. E não era por vaidade que eu me sentia assim inteiro. Era por ver tanta emoção e tanta gargalhada brotar de algo que nasceu em mim.

    Enfim, comecei esse texto aqui em um cinema e termino em outro. No filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, a protagonista faz uma lista de seus pequenos prazeres. Um deles é, justamente no cinema, prestar atenção no rosto dos outros espectadores, vê-los sorrir e chorar com a história representada. Essa é, para mim, a melhor definição de porque eu escrevo. Para isso: para tocar alguém. Para fazer alguém sentir o que eu senti. Em resumo, escrevo para encantar quem me lê e ser, então, menos só como ser humano.

    PS: O espetáculo continua circulando nas cidades de Carazinho (26), Ijuí (28) e Erechim (30). Em Tapera, ele acontecerá em Novembro. E, no ano que vem (eu soube hoje) vai se tornar internacional.

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