Aconteceu em março, entre os dias 14 e 18, o Festival Literário de Madeira. Madeira, também conhecida como Ilha das Flores, é um cenário espetacular, com temperaturas sempre agradáveis ao longo do ano. O evento aconteceu no Teatro Baltazar, um local elegante e sofisticado. Um local acolhedor para receber os escritores lusófonos. Vieram de Angola Pepetela, Ondjaki, Valter Hugo Mãe. E outros, de Portugal e outras partes do mundo. No entanto, eu só fiquei por dois dias e assim, não pude assistir a todas as conversas. No entanto, vou partilhar um pouco do que ouvi.

    Como outros tantos participantes, sofri a frustração da ausência de Svetlana Alexievich devido aos fortes ventos que varreram a ilha naquela semana e interrompeu os vôos.

    A primeira conversa que aconteceu, portanto, foi a moderada por Fernando Alves e envolveu Ondjaki e Pepetela. Aí a pergunta do moderador: “Você foi à guerra?” imediatamente desviou o assunto dos livros para a realidade. Mesmo que Ondjali tenha falado muito sobre “Os da minha rua”, frisando que as opiniões são tão diversas quanto as pessoas, o discurso escorregou para a separatividade.

    No plano político, é fácil cair na armadilha do “nós” contra “eles”, sendo “eles” sendo os que estão contra o povo, como se “eles” não pertencessem ao povo – pertencem! Sendo “eles” os culpados, simplesmente não nos enxergamos como parte do problema e nem tampouco da solução, que fica sendo uma questão de acabar com o inimigo. Assim começam as guerras – armadas, publicitárias ou econômicas, todas as guerras nascem dessa ilusão separatista entre um nós e um eles.

    Senti-me estrangeira, mais do que mal informada, com aqueles comentários sobre o acontecido em Angola, o colonizado, o colonizador, o imigrante, o africano, o europeu, todas aquelas histórias de um mundo que não conheço, o debate acabou escapando do escopo literário e ficou um tanto hermético.

    Contudo, a decepção maior foi ver uma conversa, que deveria ter sido literária, sofrer um viés político e ser transformado em palco de política partidária por um dos participantes, cujo nome nem citarei. No entanto, tive a satisfação de ouvir Valter Hugo Mãe contrapor-se a seu companheiro de conversa com elegância e discernimento.

    Há alguns anos, apaixonei-me pelo Valter no primeiro capítulo de O filho de mil homens, do qual cito um trecho:

    O amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa.

    Valter Hugo Mãe levantou sua voz nessa conversa em nome dos assustados e perplexos imigrantes, malvistos hoje no território europeu por serem os indesejáveis. Qual é a diferença entre ex colonizadores, ex colonizados, oponentes políticos, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes? Somos todos membros de uma sociedade global, interdependentes e precisamos nos amparar como a família humana que somos. Valter finalizou partindo para o humor:

    “Rejeitamos o imigrante por medo de que ele se aproprie de “nosso” espaço, depois rejeitaremos os carecas*, os gordos, os magros, os que usam bigode os os que não têm pelo na cara. E depois?”

    *Valter é careca e fez a plateia rir

    A conversa retornou para a literatura, seu obejtivo, afinal. E a moderadora Maria João Costa se mostrou à altura do debate. Durante o evento comprei “O paraíso são os outros”. Título que rebate a famosa frase de Sartre “o inferno são os outros”. Nesta obra juvenil, Valter Hugo Mãe fala aos jovens. Toma o caminho de Lobato e Exupéry, que também se dirigiram aos jovens, cansados dos ouvidos calejados dos adultos. Nessas páginas encontramos em palavras adequadas aos miúdos, mas também à criança adormecida em cada um de nós, o respeito pela diferença, o acolhimento, o cuidado com o próximo, a ética, o amor, enfim. Pois não importa quem foram nossos antepassados. Pertencemos todos à mesma humanidade, somos irmãos. Exercitar-se no difícil aprendizado do amor é necessário, o resto é irrelevante. Se o barco afundar, morreremos todos.

    Foto: Sul 21, Nelson Daires


    Sonia Regina Rocha Rodrigues
    É escritora e médica, idealizou o jornal “Um Dedo de Prosa” e foi co-editora da revista literária “Chapéu-de-Sol”, que circulou em Santos/SP de 1996 a 2001. É autora dos livros de contos “Dias de Verão“, (1998), É suave a noite (2014), Coisas de médicos, poetas, doidos e afins (2014)
    Em 1996, participou da fase regional do Mapa Cultural Paulista com o conto “A Auditoria”, representando a cidade de Bebedouro. Sua monografia “A Importância da Cultura Para a Formação do Cidadão” foi utilizada pelo prova do Enem em 2011. Tem um blog.

    Share.