Marina Colasanti não é uma escritora simples, apesar de ter o seu nome mais associado à sua produção de livros infantis. Suas poesias para adultos (algumas eróticas) possuem um poder secreto, de se revelar com suavidade, mas, de repente, é como um soco no estômago. Selecionei abaixo as 10 poesias mais lindas de Marina Colasani, pelo menos pra mim. rs

    I

    Lá fora, a noite (Marina Colasanti)

    É quando a família dorme
    – inertes as mãos nas dobras dos lençóis
    pesados os corpos sob a viva mortalha –
    que a mulher se exerce.
    Na casa quieta
    onde ninguém lhe cobra
    ninguém lhe exige
    ninguém lhe pede
    nada
    caminha enfim rainha
    nos cômodos vazios
    demora-se no escuro.
    E descalços os pés
    aberta a blusa
    pode entregar-se
    plácida
    ao silêncio.

    II

    Outras palavras

    Para dizer certas coisas
    são precisas
    palavras outras
    novas palavras
    nunca ditas antes
    ou nunca
    antes
    postas lado a lado.
    São precisas
    palavras que inventaram
    seu percurso
    e cantam sobre a língua.
    Para dizer certas coisas
    são precisas palavras
    que amanhecem.

    Marina Colasanti
    Livro de poesias da autora Marina Colasanti lançado em 2008. Compre na Amazon

    III

    Corpo adentro (Marina Colasanti)

    Teu corpo é canoa
    em que desço
    vida abaixo
    morte acima
    procurando o naufrágio
    me entregando à deriva.

    Teu corpo é casulo
    de infinitas sedas
    onde fio
    me afio e enfio
    invasor recebido
    com licores.

    Teu corpo é pele exata para o meu
    pena de garça
    brilho de romã
    aurora boreal
    do longo inverno.

    Marina Colasanti
    Livro de poesias publicado em 2005. Compre na Amazon

    IV

    Porta do armário aberta

    Abro a porta do armário
    como abro um diário,
    a minha vida ali
    dependurada
    meu frusto cotidiano
    sem segredos
    intimidade exposta
    que os botões não defendem
    nem se veda nos bolsos,
    espelho mais real que todo espelho
    entregando à devassa
    as medidas do corpo.

    Armário
    tabernáculo do quarto
    que abro de manhã
    como à janela
    para sagrar o ritual do dia.
    Sala de Barba Azul
    coalhada de pingentes
    longas saias e véus
    emaranhados sem que sangue goteje.
    Corpos decapitados
    ausentes minhas mãos
    dos murchos braços.

    Do armário minhas roupas
    me perseguem
    como baú de herança ou
    maldição.
    Peles minhas pendentes
    em repouso
    silenciosas guardiãs
    dos meus perfumes
    tessituras de mim
    mais delicadas
    que a luz desbota
    que o tempo gasta
    que a traça rói
    ainda assim durarão nos seus cabides
    muito mais do que eu sobre meus ossos.

    Nenhuma levarei.
    Irei despida
    deixando atrás de mim
    a porta aberta.

    V

    Rota de colisão

    De quem é esta pele
    que cobre a minha mão
    como uma luva?
    Que vento é este
    que sopra sem soprar
    encrespando a sensível superfície?
    Por fora a alheia casca
    dentro a polpa
    e a distância entre as duas
    que me atropela.
    Pensei entrar na velhice
    por inteiro
    como um barco
    ou um cavalo.
    Mas me surpreendo
    jovem velha e madura
    ao mesmo tempo.
    E ainda aprendo a viver
    enquanto avanço
    na rota em cujo fim
    a vida
    colide com a morte.

    VI

    Tua mão em mim (Marina Colasanti)

    Você me acorda no meio da noite
    e eu que navegava tão distante
    cravada a proa em espumas
    desfraldados os sonhos
    afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
    a boca ainda salgada mas já amarga
    molhada a crina
    encharcados os pêlos
    na maresia que do meu corpo escorre.
    Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
    A correnteza arrasta.
    Só quando o primeiro sopro escapar
    entre os lábios da manhã
    levantarei âncora.
    Mas será tarde demais.
    O sol nascente terá trancado o porto
    e estarei prisioneira da vigília.

    VII

    Vincent

    Ciprestes de Van Gogh
    imóveis labaredas
    verdes incêndios sobre a tela
    verdes mulheres nuas
    em seus cabelos.

    Ciprestes de Van Gogh
    bizantinas colunas
    da paisagem
    vórtice
    remoinho erguido
    como o grito
    o fallus
    o arremesso de gozo
    do pintor.

    VIII

    Entre um jogo e outro (Marina Colasanti)

    Ter você nu na cama
    que deleite.
    E como a gente brinca
    e rola e ri
    para depois sentar
    nos lençóis descompostos
    o corpo ainda suado
    e continuando sempre
    o mesmo jogo
    falar a sério
    de literatura.

    Te beijo no cangote
    e quieta penso:
    um outro amante assim
    Senhor
    que trabalho terias
    pra me arrumar
    se me tomasses este.

    IX

    Sexta-feira à noite (Marina Colasanti)

    Sexta-feira à noite
    os homens acariciam o clitóris das esposas
    com dedos molhados de saliva.
    O mesmo gesto com que todos os dias
    contam dinheiro papéis documentos
    e folheiam nas revistas
    a vida dos seus ídolos.

    Sexta-feira à noite
    os homens penetram suas esposas
    com tédio e pênis.
    O mesmo tédio com que todos os dias
    enfiam o carro na garagem
    o dedo no nariz
    e metem a mão no bolso
    para coçar o saco.

    Sexta-feira à noite
    os homens ressonam de borco
    enquanto as mulheres no escuro
    encaram seu destino
    e sonham com o príncipe encantado.

    X

    Frutos e flores (Marina Colasanti)

    Meu amado me diz
    que sou como maçã
    cortada ao meio.
    As sementes eu tenho
    é bem verdade.
    E a simetria das curvas.
    Tive um certo rubor
    na pele lisa
    que não sei
    se ainda tenho.
    Mas se em abril floresce
    a macieira
    eu maçã feita
    e pra lá de madura
    ainda me desdobro
    em brancas flores
    cada vez que sua faca
    me traspassa.

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