Adélia Prado iniciou sua carreira na literatura 1976. Na época, ela já era formada em Filosofia, casada e com 5 filhos. O nome de seu primeiro livro é “Bagagem” e nele já podemos observar a valorização da mulher, pois ela trouxe novos olhares às poesias consagradas, como de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Abaixo está uma pequena seleção de alguns poemas da autora Adélia Prado que colaboram para a visão de mundo da mulher, ainda tão necessária hoje em dia.

    Adélia Prado
    Adélia Prado – poesia reunida: “neste único volume repleto de seu imaginário acolhedor, encontram-se todos os poemas de Bagagem, O coração disparado, Terra de Santa Cruz, O pelicano, A faca no peito, Oráculos de maio, A duração do dia e Miserere. Esta edição conta ainda com textos de Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de Sant’Anna e posfácio de Augusto Massi.” COMPRE NA AMAZON

    1. Com licença poética

    Quando nasci um anjo esbelto,
    desses que tocam trombeta, anunciou:
    vai carregar bandeira.
    Cargo muito pesado pra mulher,
    esta espécie ainda envergonhada.
    Aceito os subterfúgios que me cabem,
    sem precisar mentir.
    Não tão feia que não possa casar,
    acho o Rio de Janeiro uma beleza e
    ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
    Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
    — dor não é amargura.
    Minha tristeza não tem pedigree,
    já a minha vontade de alegria,
    sua raiz vai ao meu mil avô.
    Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

    Mulher é desdobrável. Eu sou.

    2. Agora, ó José

    É teu destino, ó José,

    a esta hora da tarde,
    se encostar na parede,
    as mãos para trás.
    Teu paletó abotoado
    de outro frio te guarda,
    enfeita com três botões
    tua paciência dura.
    A mulher que tens, tão histérica,
    tão histórica, desanima.
    Mas, ó José, o que fazes?
    Passeias no quarteirão
    o teu passeio maneiro
    e olhas assim e pensas,
    o modo de olhar tão pálido.
    Por improvável não conta
    O que tu sentes, José?
    O que te salva da vida
    é a vida mesma, ó José,
    e o que sobre ela está escrito
    a rogo de tua fé:
    “No meio do caminho tinha uma pedra”
    “Tu és pedra e sobre esta pedra”.
    A pedra, ó José, a pedra.
    Resiste, ó José. Deita, José,
    Dorme com tua mulher,
    gira a aldraba de ferro pesadíssima.
    O reino do céu é semelhante a um homem
    como você, José.

    Adélia Prado
    Reunião de poesia: 150 poemas selecionados (edição de bolso): “Esta Reunião de poesia apresenta ao leitor 150 poemas selecionados dos 7 livros de poesias da autora: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de maio (1999) e A duração do dia (2010). COMPRE NA AMAZON

    3. Dona Doida

    Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
    com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
    Quando se pôde abrir as janelas,
    as poças tremiam com os últimos pingos.
    Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
    decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
    Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
    trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
    A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
    com sombrinha infantil e coxas à mostra.
    Meus filhos me repudiaram envergonhados,
    meu marido ficou triste até a morte,
    eu fiquei doida no encalço.
    Só melhoro quando chove.

    4. Momento

    Enquanto eu fiquei alegre,
    permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
    uma garrafa de pimenta pelo meio,
    um latido e um céu limpidíssimo
    com recém-feitas estrelas.
    Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
    constituindo o mundo pra mim, anteparo
    para o que foi um acometimento:
    súbito é bom ter um corpo pra rir
    e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
    alegre do que triste. Melhor é ser.

    5. Antes do nome

    Não me importa a palavra, esta corriqueira.
    Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
    os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
    o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
    muleta que me apóia.
    Quem entender a linguagem entende Deus
    cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
    A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
    foi inventada para ser calada.
    Em momentos de graça, infrequentíssimos,
    se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
    Puro susto e terror.

    Adélia Prado
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    6. Casamento

    Há mulheres que dizem:
    Meu marido, se quiser pescar, pesque,
    mas que limpe os peixes.
    Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
    ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
    É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
    de vez em quando os cotovelos se esbarram,
    ele fala coisas como “este foi difícil”
    “prateou no ar dando rabanadas”
    e faz o gesto com a mão.
    O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
    atravessa a cozinha como um rio profundo.
    Por fim, os peixes na travessa,
    vamos dormir.
    Coisas prateadas espocam:
    somos noivo e noiva.

    7. Um jeito

    Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
    Quando aperta eu grito da janela
    — ouve quem estiver passando —
    ô fulano, vem depressa.
    Tem urgência, medo de encanto quebrado,
    é duro como osso duro.
    Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
    quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
    espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
    de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
    Pouca gente gosta.

    8. Amor violeta

    O amor me fere é debaixo do braço,
    de um vão entre as costelas.
    Atinge meu coração é por esta via inclinada.
    Eu ponho o amor no pilão com cinza
    e grão de roxo e soco. Macero ele,
    faço dele cataplasma
    e ponho sobre a ferida.

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