Um ano marcado pela violenta escrita de Elena Ferrante. Uma ode à Elena Ferrante porque ela vem revelando intelectual e emocionalmente a natureza e o mundo.

    Chegou aquela época do ano novamente em que paramos para avaliar se nossos projetos foram realizados e se nossa lista de leitura foi cumprida.

    Em 2018, minha intenção era me dedicar exclusivamente à literatura inglesa, principalmente àquela escrita por mulheres. Ainda me chama a atenção o fato de que dos países europeus (e talvez até latino-americanos), desde o século XVII, a Inglaterra parece ter tido o maior número de escritoras e leitoras. Em Um teto todo seu (1929), Virginia Woolf chegou a imaginar como seria a vida da irmã de Shakespeare, caso ela tivesse as mesmas condições de escrever e de se dedicar às letras como seu famoso irmão. A irmã fictícia de Shakespeare não conseguiu ir muito longe na vida. Mas, mesmo em condições adversas, e muitas vezes publicando em anonimato ou com pseudônimos masculinos, o número de escritoras na Inglaterra não é nada irrelevante e eu queria acompanhar essa produção ao longo do tempo.

    Minha lista de 2018 estava povoada de Mary Shelley, George Eliot, as irmãs Brontë, Jane Austen e a própria Woolf. Não cheguei nem perto de cumprir este projeto literário, e nem o não tão grande número de livros que tinha estipulado concluir naquele desafio de leitura que também todos os anos me imponho. Outras obras começaram a entrar no caminho e vocês podem ver minhas leituras favoritas do ano passado neste link.

    Um 2019 rarefeito

    Justamente por isso, comecei 2019 sem planos pré-determinados. E, por mais estranho que pareça, foi exatamente neste ano que minhas leituras foram mais coerentes. Sem programar e sem esperar, minhas estantes imaginárias e reais se povoaram de literatura distópica e de horror. Talvez tenha sido mesmo influência do ar rarefeito que nos rodeou neste ano. Este ar sórdido, pesado, que muitas vezes nos cortou a respiração.

    Não foram poucos os dias em que me peguei acreditando que vivia no mundo futurista de um Orwell, ou de um Ray Bradbury em que a queima de livros e incentivo à ignorância e ao pensamento único eram práticas comuns. Falarei mais sobre isso em outra ocasião se a memória não me falhar ou o tempo não me trair (quem sabe na newsletter Livro & Café de janeiro de 2020, aguardem!). Neste post, quero mesmo é alçar como melhor leitura de 2019 os quatro volumes da saga de Lila e Lenú, escritos por aquela que hoje ocupa um dos lugares mais elevados do pedestal das minhas escritoras contemporâneas favoritas: Elena Ferrante.

    Elena Ferrante e a tetralogia genial

    Já no ano passado, Ferrante apareceu na minha lista de livros favoritos, devido ao impacto que Dias de abandono teve sobre mim. Foi minha estreia no mundo de Elena. E que estreia! Li em dois dias, entre um aeroporto e outro, uma casa e outra, um verão e um inverno, sem conseguir parar. Quase de um respiro só. Aquela escrita crua, destituída de floreios, que dá o nome exato a cada coisa, a cada sentimento, me deixou no chão! Quem de nós não experimentou dias de abandono? Dias em que tudo ao nosso redor desaba e o chão falta sob nossos pés? Mas quem de nós é capaz de ordenar o caos, dar forma ao que não se contém? Elena Ferrante faz isso para e por nós.

    E é essa capacidade de dar forma, coerência e ordem para o desordenado e inconstante da vida que também aparece na série inaugurada com A amiga genial. A série napolitana, como ficou conhecida, tornou-se quase viral e, segundo um documentário feito sobre Ferrante em 2017, fez com que uma febre-Ferrante atingisse escala mundial. Por isso, falar qualquer coisa sobre ela parece dar informações já bem conhecidas, se não pela própria leitura do livro, ao menos pelo sucesso que também alcançou a série produzida pela HBO, com o primeiro volume da obra exibido no ano passado.

    ode à Elena Ferrante
    Cena de “My Brilliant Friend”. Foto: Reprodução / HBO.

    Mas, vamos lá: trata-se de uma tetralogia escrita a partir de 2012, e que acompanha, de forma não-linear, a vida das amigas Lila e Lenu (ou Raffaela Cerullo e Elena Greco). Os quatro volumes retratam a infância em um bairro pobre de Nápoles e as desesperanças, dificuldades e situações sem respostas da vida adulta, que acompanham os desenvolvimentos políticos e culturais da Itália. Acredito que, no total, foram mais de 1000 páginas que li em um mês, um recorde para alguém que há algum tempo fez a escolha por ler devagar e com longas pausas. Mas Ferrante não me deu essa opção. Eu contava os minutos em que poderia novamente colocar as mãos no livro e seguir caminhando ao lado de Lila e Lenu pelas ruas de Nápoles.

    Livro 1: A amiga genial

    Em A amiga genial, tudo começa com o desaparecimento de Lila, a menina, a mulher decomposta, cujos limites eram constantemente diluídos, transbordando as fronteiras de um corpo consumido. É este desaparecimento sem rastros que impulsiona a amiga e reconhecida escritora Elena a lhe restituir a forma por meio da escrita; torná-la presença diante de um esquecimento potencial; fazê-la memória em uma vida de insignificâncias. Afinal, se não falam de nós, se não escrevem sobre nós, se não somos lembranças, o que resta de nós? Desaparecemos ou somos desaparecidos de várias formas, em vários e diferentes momentos das nossas vidas. Da mesma maneira, quantas vidas e quantas pessoas se perderam de nós ao longo do caminho? E se nossa história não é contada, escrita, lembrada, o que fica de nós? Quem nos conhece? Quem pode atestar a realidade de nossa existência quando já não somos presença?

    O desaparecimento de Lila requer, portanto, uma presença, uma lembrança, a preservação de uma história. Entretanto, a escrita de Lenu é quase um ato de vingança, que contraria o desejo da amiga de desaparecer completamente e ter partes de sua vida caladas, esquecidas. E é assim que essa outra escritora, de pseudônimo Elena Ferrante, nos lança em uma Nápoles destruída com o fim da Segunda Guerra Mundial, e apresenta a luta de famílias empobrecidas que vivem à margem e às voltas com máfias e dificuldades diversas em um bairro periférico, de onde se mira o Vesúvio.

    As duas meninas em período escolar são postas diante da pobreza e do questionamento sobre os meios possíveis de dela escaparem. Desde a infância, Lila já manifestava o desejo de enriquecer para fugir de um mundo violento, bruto e opressivo. Mas quais seriam as chances oferecidas a mulheres que viviam em uma sociedade patriarcal, de uma Itália dos anos 40? O casamento e a reprodução de um sistema de aprisionamento? Ou a continuidade dos estudos, os livros, a escrita? Com a chegada da adolescência, o destino das duas amigas parecem seguir caminhos distintos. Entretanto, as escolhas diversas, as diferentes oportunidades oferecidas a cada uma delas acabam apontando para diferenças postas apenas na superfície, já que na profundidade desaguam no mesmo mar de desencanto. Sem querer entregar o enredo, só digo que as últimas três páginas da obra me cortaram o coração e me deixaram encarando o vazio por muito tempo!

    Livro 2: História do novo sobrenome

    E antes mesmo de terminar A amiga genial eu já havia feito uma visita à perigosa Amazon e encomendado os três volumes seguintes da série napolitana. Por sorte, assim que meus olhos retomaram o foco e enchi novamente os pulmões de ar, História do novo sobrenome estava à minha espera. Ler o segundo volume na sequência foi bom porque os detalhes estavam frescos na minha memória. Lembrava-me dos personagens com exatidão, e não são poucos os nomes e famílias que compõem essa história. Mas o coração partido ainda não tinha sido refeito, e as primeiras páginas da obra não contribuíram para o processo de cura. O desencantamento do mundo seguiu o seu curso.

    O início de livro traz a reprodução do mundo de violência que nos habituamos a reconhecer como parte daquela vizinhança. A desilusão por sonhos irrealizados e a luta para seguir viva buscando meios de sobrevivência compunham a própria natureza das personagens. É difícil ler as primeiras páginas de História do novo sobrenome sem se despedaçar. Sem simpatizar com as dores de Lila. Com um destino selado com sangue. E dores. Mas também senti ódio de Lila. Tive raiva de Lenu. Queria que ela encontrasse sua voz, saísse das sombras de uma genialidade crítica e cruel.

    E este é um dos grandes méritos de Ferrante. Não há em suas obras uma personagem unilateral. Ela consegue criar pessoas ambíguas, reais, palpáveis, de carne, osso e sangue. Quantas vezes não me perguntei porque eu mesma havia mantido, por anos, amizades com pessoas incapazes de enxergar, de ouvir, de se compadecer, de ter compaixão? Como havia sido possível gostar, me identificar, respeitar, e mesmo admirar pessoas cujo criticismo havia me feito duvidar dos meus méritos por me fazerem acreditar que sempre os devia a outros? As disputas entre amigas não são fora de comum. As invejas. Os jogos de força e de sedução. E, neste volume, as tensões entre Lila e Lenu acirraram-se em um crescendo com tendência a explodir. Ou implodir.

    Em comparação com A amiga genial, entretanto, História do novo sobrenome não me agradou muito. Arrisco a dizer que foi o volume de que menos gostei, embora muita coisa importante aconteça ali. Pode ser que minha impressão tenha sido resposta aos sentimentos ambivalentes que a obra me despertou. Sentimentos de piedade, de amor, de compaixão, assim como de ódio, de uma intolerância que ansiava por mudanças. Por um grito entalado na garganta.

    Mas, também, me pareceu que o enredo se perdeu, se prolongou demais em alguns momentos e foi encerrado abruptamente como se a escritora estivesse se cansado de escrever e quisesse, ela também, dar um basta naquilo. Mas quem sou eu para analisar ou avaliar a Ferrante? Certamente nem crítica literária, nem especialista do mundo das Letras. O fato é que mesmo sem terminar a leitura em estado catártico, o segundo volume não me impediu de seguir para o terceiro, que novamente explode em tensões com a proximidade dos anos 60 e 70.

    Livro 3: História de quem foge e de quem fica

    Desde a infância, o desejo de Lila era fugir daquele mundo violento, de opressões. Com essa motivação, ainda menina, escreveu um livro, A fada azul, que, acreditava, abriria a porta para mundos melhores e uma nova vida. Mas foi Lenu, sua amiga genial, quem se tornou uma escritora reconhecida, com obras publicadas, e residente da parte intelectual e desenvolvida da Itália. Foi Lenu quem realizou o sonho de viver em um ambiente cultivado, ao redor de pessoas influentes, entre Piza, Florença e Turim. E isso no momento em que as tensões sociais se polarizavam, provocando lutas em portas de fábricas e a expansão dos ideias comunistas, em oposição aos detentores do capital e da política camorrista, que atingiam a Nápoles de Lila.

    É também o período em que, nas universidades, os movimentos feministas lançavam questionamentos sobre a identidade feminina e a possibilidade de se existir, de se ser mulher para além do olhar masculino. E essa onda de mudanças é acompanhada por um descompasso na amizade das duas meninas, agora mulheres, em razão das voltas e reviravoltas da vida. Sonhos idealizados no outro são postos à prova e não sabemos ao certo se aquela que foge não é, de fato, quem fica. Ou, se a que fica não está, no fundo, fugindo e se distanciando, superando, reorganizando o caos de um mundo à beira do abismo.

    Elena Ferrante também me deixou sem resposta para a questão que perpassa o segundo livro publicado por sua Elena Greco. Por mais que, intelectualmente, os avanços feministas tenham exposto as fragilidades e os limites da vivência plena da feminilidade, e da constante definição de seus papéis por homens, quantas mulheres não são, sem o saberem, criações de outras mulheres? Quantas são as que escolhem seus caminhos para corresponderem às expectativas e cumprirem os sonhos de outras mulheres ou para delas se distanciarem? Ao lutarem por uma existência autêntica, Lenu e Lila acabam percorrendo um ciclo completo. Ao fugirem, são remetidas aos seus lugares de origem.

    Livro 4: História da menina perdida

    Sem comprometer futuras leituras, acho que posso dizer que a amizade de Lila e Lenu foi selada por uma perda. Ainda crianças, Rafaella e Elena se reconheceram uma na outra por meio de suas bonecas: Tina e Nu. Uma brincadeira caprichosa de Lila levou à perda das bonecas, e, com elas, a da própria inocência. No último volume da obra, História da menina perdida, Elena Ferrante explorou em detalhes as dores dilacerantes da ausência de Tina, cuja existência havia transformado a vida das duas amigas, aproximando-as mais uma vez.

    O quarto livro fecha com perfeição a história das amigas geniais, mas fez de mim uma menina perdida, órfã, sem rumo. Ao concluir a tetralogia, continuei a procurar as duas meninas em outros livros, imagens e encenações, mas nenhuma leitura ou adaptação que me caía nas mãos e diante dos olhos foi capaz de me trazer conforto. E ainda hoje, meses depois de ter lido as obras, ainda tento resgatar a menina perdida em outras linhas, em outros cenários. E a conclusão a que chego é que Elena estava certa: por mais decomposta que seja uma vida, por mais diluídas que sejam as fronteiras de uma pessoa, nenhuma existência passa sem deixar rastros; sem deixar marcas; sem, de algum modo, tocar a outros. A escrita permite a organização do caos da existência. A narrativa, a ordenação da inconstância da vida. E aqueles que se foram, que se perderam, seguem, de alguma forma, em nós. Enquanto tivermos memória. E tempo.

    Leia mais: 

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