No segundo texto sobre “O médico e o monstro” e em sua estreia na revista, Julio Cesar Teles reflete sobre o terror humano na obra de Stevenson

    Esse texto é sobre uma das questões que me tocou profundamente na obra O médico e o monstro[1] (1886) de Robert Louis Stevenson (1850-1894). O convite para escrevê-lo veio por meio de duas amigas queridas com as quais partilhei tais questões, em um clube virtual de leitura que tem sido um espaço de reflexão e debate.

    O terror humano

    A minha percepção sobre a obra de Stevenson foi diferente daquela que a Rossana Pinheiro-Jones teve sobre o mistério da história. Acredito que por desconhecer o enredo, por vezes tive uma sensação de saber sobre a identidade do monstro, mas, por conta da ambiguidade com a qual o autor constrói a narrativa, eu duvidava logo em seguida, até o momento em que a identidade se fez evidente. A curiosidade também foi algo que me fez querer ler o mais rápido possível, todavia não houve um apego da minha parte aos personagens – talvez isso seja algo proposital do escritor.

    Dentre as inquietações advindas da leitura, optei por escrever sobre o terror. A literatura de horror possui diversas categorias: gótico, ficcional, psicológico, social etc., porém parece que o medo é um elemento comum em todas elas. De acordo com alguns autores, a obra O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, é uma das primeiras manifestações do terror. Embora a obra não manifeste um alto grau de tal, eles afirmam que a exploração ficcional feita nela inspirou os autores góticos do século XIX.

    Entretanto, não é sobre esse terror que pretendo falar. Stephen King, sem deixar o ficcional, demonstra em seus livros o terror humano. O autor nos mostra que não é preciso sair do real para temer. É sobre esse terror que pretendo falar, o terror que há em nós e, que muitas vezes é tão temível, que tentamos acreditar que não existe. Quem nunca temeu aquele lado desumano? Quem não se desesperou ao pensar ou viver a perda de uma pessoa querida? A condição humana findável é uma questão que vez por outra volta a inquietar-nos.

    Entre o bem e o mal, há lugar para o arrependimento?

    Boa parte da história é contada por John Utterson, que curioso com o que se passava entre seu amigo Dr. Henry Jekyll e Mr. Edward Hyde, investiga acontecimentos estranhos. Enquanto o médico, Jekyll, é um homem reservado, de bons modos, que frequenta a alta sociedade vitoriana, portando-se segundo os padrões sociais públicos; Hyde, o monstro, é um ser mal encarado, de má reputação, herdeiro de Jekyll – esse testamento é um dos elementos que deixa o advogado Utterson curioso para investigar tal relação. Conforme a história vai sendo desenvolvida, descobrimos que Dr. Jekyll faz um experimento científico – próximo àqueles experimentos que ficaram conhecidos nas histórias de terror – para separar sua natureza boa de sua natureza má e, ao fim, o experimento falha, porque, à medida que foi tomando as doses, Jekyl percebe que a tendência para o mal vai aumentando, ficando mais violenta e desenfreada. Ao ponto que ele diz: “se sou o maior dos pecadores, sou também a maior das vítimas.”[2]

    O final da história é uma confissão do médico sobre seu experimento, para mim uma das partes mais inquietantes do enredo. Primeiro, o fato de ser uma confissão me fez refletir sobre esse ato. Jekyll decidiu confessar tudo porque deu errado? Ou será que ele se sentia culpado pelos atos de Hyde, porque ambos partilhavam a mesma memória, e a confissão foi um meio de aliviar sua consciência? Houve arrependimento ou se tratou apenas de um ato público, sem mudança interna, já que ele gostava da liberdade que a natureza má lhe propiciava. Confessar não significa arrepender-se, assim como para arrepender-se nem sempre é preciso confessar…

    As duas naturezas que lutavam na minha consciência eram minhas, porque eu era em essência ambas. Desde o início, ainda antes das minhas descobertas científicas começarem a sugerir-me a possibilidade de tal milagre, dediquei-me a pensar placidamente, como se se tratasse de um sonho querido, na possibilidade de separar esses dois elementos. Se cada um deles, dizia eu, pudesse habitar em identidades diferentes, a vida libertar-se-ia do que hoje se me afigura insuportável; o injusto poderia seguir o seu caminho, despojado das aspirações e do remorso do seu irmão gêmeo, mais reto; e o justo avançaria com segurança e firmeza pela sua senda ascendente, realizando as boas obras nas quais encontra prazer e sem se expor às desgraças e à penitência provocadas por esse espírito perverso e desconhecido. Esta era a maldição da humanidade: o fato desses dois ramos incongruentes estarem unidos com tanta força, que – nas agonizantes entranhas da consciência – estes gêmeos opostos lutaram continuamente entre si. Então, como dissociá-los?[3] (grifos nossos).

    É na confissão do Dr. Jekyll que nos confrontamo com a dualidade humana e nos deparamos com o terror que há em nós, pois “o homem não é autenticamente um, mas sim dois.”[4] Lidar com essa dualidade causa um grande medo, afinal, existem situações na vida que a dualidade aparece ou, ainda, em que o lado que não nos agrada se manifesta.

    O caso de Jekyll e Hyde deixa clara nossa limitação enquanto seres humanos, e ainda que fosse possível separar o bom do mau, continuaríamos lidando com a complexidade de quando beber a fórmula para ser Jekyll – bom e justo – e de quando ser Hyde – mal e injusto. Não é possível separar os antônimos humanos e, por mais medo que isso nos cause, precisamos aceitar que nossa complexidade humana envolve aprender a lidar com nossa natureza em suas diversas faces. “[…] o hábito de sofrer supõe, senão um alívio, pelo menos um certo endurecimento do espírito, uma certa aquiescência no desespero.”[5]

    A questão que fica para reflexão é: quanto de Jekyll e quanto de Hyde há em nós?

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    [1] No original, Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde.

    [2] Versão Kindle, posição 531.

    [3] Ibid., posição 939.

    [4] Ibid., posição 936.

    [5] Ibid., posição 1183.

    Imagem de capa: cena do filme Dr. Jekyll & Mr. Hyde, direção de 1931, Paramount.

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