“Casei com um comunista” suscita a atualidade dos dilemas da Guerra Fria

    Para Will, que sempre lê antes…

    Listas de livros para ler sempre nos espreitam, e como elas sempre aumentam, algumas prioridades vão ficando para trás. Li Pastoral americana (1997), de Philip Roth (1933-2018), há alguns anos, e desde então seus livros povoam minhas listas de leituras fundamentais. Recentemente, instigada pelo título que o jornalista Kennedy Alencar dera à sua nova coluna, que versaria sobre as eleições nos Estados Unidos, nomeadamente “Pastoral americana”, em homenagem a Philip Roth, retornei a antigos títulos da minha lista e li Casei com um comunista (1998). E lá estava o mesmo Nathan, alter ego de Roth, movimentando personagens no tempo por meio de suas memórias e sutilezas.

    Desta vez não se tratava da família perfeita do sonho americano, desfeita pelas opções políticas e ações terroristas de sua filha dileta nos anos de 1960 e 1970, como na Pastoral, mas dos caminhos de uma família de judeus pobres nos anos de 1940 e 1950, lidando com a Segunda Guerra e seus efeitos. As perseguições decorrentes do decreto Taft-Hartley e do projeto de lei Mindt-Nixon – o primeiro, restringindo ações sindicais, o segundo, controlando as atividades consideradas subversivas nos Estados Unidos – vão sendo apresentadas ao leitor junto com os valores americanos, seus modos de viver e de pensar. Nathan, que observa, descreve e narra, em meio a revelações de sentimentos e visões de mundo, continua a nos assombrar com as possibilidades que saem da narrativa e que nem sempre se evidenciam nos muitos caminhos dos personagens que se apresentam ao leitor.

    casei com um comunista
    Capa da edição brasileira de “Casei com um comunista”, publicada pela Companhia das Letras em 2014, com tradução de Rubens Figueiredo.

    Vidas marcadas pela História

    Em Casei com um comunista, Nathan nos conta a história dos irmãos Murray e Ira Ringold. O primeiro, era seu professor, capaz de lançar um poderoso feitiço narrativo para convencer os alunos de que pensar é a maior transgressão que existe. O segundo, mais jovem, fora criado pelo mais velho, já que a mãe morrera cedo e o pai violento não oferecia segurança. Ambos estiveram na Segunda Guerra: Murray no campo de batalha; Ira, como estivador, em tarefas não diretamente de confronto armado, mas com uma experiência que o marcaria para sempre, pois, foi quando conheceu O’Day, que o recrutou para o Partido Comunista nas docas do Irã.

    Retornados da guerra, Murray ensinaria, buscando a construção de pensamento crítico entre seus alunos, e Ira se tornaria ator de novelas de rádio, lugar onde acreditava poder despertar o proletariado levantando sua voz em interpretações de Lincoln. Foi como ator que conheceu Eve, uma atriz de vida conturbada e carreira já não tão virtuosa, com quem se casaria e viveria uma relação conflituosa, não apenas pelo antissemitismo confesso dela, mas pelo convívio com aquele mundo de sonhos da burguesia americana. O comunista Ira amava a esposa, parecia buscar uma vida feliz no casamento, mas seus ideais o manteriam em constante conflito com a própria vida que criara com Eve.

    Um encontro entre o professor nonagenário e Nathan, já escritor, movimenta as memórias. O velho mestre conta, então, o destino de Ira naqueles anos de anticomunismo congressual. Das suas aventuras nas docas iranianas, ao seu casamento e aos muitos enfrentamentos que viveu pelas críticas que fazia ao american way of life, a trajetória de Ira, narrada pelas lembranças que o encontro mobiliza, permite ao leitor entrever aquela realidade americana e compreender a explosão das lutas pelos direitos civis e o início dos protestos contra a guerra do Vietnã, já esmiuçadas em Pastoral Americana. Nas docas, em um dos embates em que se colocara, Ira indagava dos outros trabalhadores:

    — Por que fazem comentários depreciativos sobre as pessoas de cor? De vocês, tudo o que ouço sobre os negros são comentários depreciativos. E vocês não são só antinegros, são anti-sindicatos, são antiliberais e são antiinteligência. São antitudo o que é do interesse de vocês mesmos. Como é que certas pessoas podem servir três ou quatro anos no exército, ver amigos morrer, se ferir, ter a vida despedaçada e mesmo assim não saber por que tudo isso aconteceu e o que significa? Tudo o que vocês sabem é que um tal de Hitler começou alguma confusão. Só sabem que o comitê de alistamento militar apanhou vocês. Sabem o que eu acho? Vocês poderiam muito bem repetir todas as ações dos alemães se estivessem no lugar deles. Podia demorar um pouco mais, por causa do elemento democrático da nossa sociedade, mas no final seríamos completamente fascistas, com um ditador e tudo, por causa das pessoas que falam essas besteiras que vocês falam. A discriminação dos oficiais mais graduados que comandam este porto já é ruim demais, mas vocês aí, que vêm de famílias pobres, uns caras sem dois vinténs no bolso, caras que não são nada no mundo a não ser bucha de canhão para a linha de montagem das fábricas, para os comerciantes unhas-de-fome, para as minas de carvão, gente em quem o sistema caga em cima — salários baixos, preços altos, lucros astronômicos — no final se mostram apenas um bando de sacanas esbravejantes e fanáticos anticomunistas que não sabem…

    Todas as idiossincrasias da terra que se acreditava livre, em oposição ao nazismo e à URSS, aparecem nas trajetórias entroncadas dos irmãos Ringold e de Nathan, especialmente quando discutem a candidatura de Henry Wallace (1888-1965) nas eleições para a presidência da República. Os argumentos contrários a Wallace, combatidos por Nathan e discutidos com os irmãos Ringold, ecoam os dias de hoje: o candidato progressista, defensor de uma aproximação com a URSS e oposto à Doutrina Truman, só serviria para manter os republicanos na Casa Branca.

    — Seu candidato só vai servir para tirar os democratas da Casa Branca — disse meu pai. — E se ficarmos com os republicanos no poder, isso vai significar o sofrimento para este país, que é o que eles sempre quiseram. Você não teve de encarar Hoover, Harding e Coolidge. Não tem a experiência direta da falta de humanidade do Partido Republicano. Você despreza os grandes magnatas, Nathan? Despreza isso que você e Wallace chamam de “os Garotões de Wall Street”? Pois bem, você não sabe como é quando o partido dos grandes magnatas está com o pé em cima da cara do povo humilde. Eu sei. Conheço a pobreza e conheço a injustiça de um jeito que você e seu irmão não tiveram de conhecer, graças a Deus.

    Wallace não venceria, evidentemente, e os Estados Unidos mergulhariam na Guerra Fria, interna e externamente. Momento histórico, aliás, recentemente aprofundado pelo documentário The untold history of the United States, de Oliver Stone e Peter Kuznick. A conjuntura de perseguição a qualquer rastro de comunismo, mesmo entre democratas radicais bem distantes do mundo idealizado pelos defensores da URSS, constrangeria o professor e o ator, ambos afastados de suas funções, embora a narrativa indique que a perseguição a Murray fora decorrente das ações de seu irmão mais jovem.

    A tênue linha entre público e privado

    O título do livro aqui discutido, Casei com um comunista, nos coloca no âmbito das relações privadas que se expressam publicamente em busca de soluções, caminhos ou vinganças: foi Eve, a esposa de Ira, quem escrevera o livro, que dá título ao romance, após a separação, incentivada por “investidores” interessados em assuntos que vendem livros, naquela época, nada melhor do que acusações sobre o caráter de um comunista que se esconde em meio a atores, teatro e livros. E nessas imbricações entre interesses políticos e sentimentos confessos e inconfessos, visões de mundo manifestadas conscientemente, ou vividas em rotinas reveladas e não compreendidas, encontra-se o melhor de Roth, cativando o leitor com uma pergunta que parece saltar do texto: qual a liberdade possível em um mundo de segregações?

    Casei com um comunista e Pastoral americana parecem denunciar as fissuras do sonho americano, aquelas conjunturas e/ou momentos em que as ações externas do país se tornam conteúdos de explicitação da violência interna, conforme Mark Twain (1835-1910) já avisara que aconteceria em suas críticas ao imperialismo norte-americano em 1900. Os dois livros de Roth se reportam ao tempo da Guerra Fria, mas incomodamente suscitam dúvidas sobre o nosso tempo vivido.

    Compre “Casei com um comunista” na Amazon


    Leia mais: 9 livros essenciais para conhecer Philip Roth

    Share.

    1 comentário

    1. Wow! Que resenha! Me chamou a atenção o aprofundamento com que deu ao livro uma visão bastante esclarecedora da ruptura do american way of life. Tive o prazer de ler todos os romances de Roth, cerca de 23 livros, na sequência de publicação. Foi uma saga solitária, árdua, mas profundamente enriqueçedora. Em Machado, nosso grande escritor, fiz o mesmo há muitos anos, li os 9 romances seus e é nítido o amadurecimento do autor, cujos livros primeiros, fracos e açucarados, deu lugar a romances sublimes como Dom Casmurro e Quincas Borba. Em Roth, desde os primeiros livros, já mostra uma maturidade impressionante, onde delineia Nathan Zuckerman e o leva a quase todos os livros posteriores. Casei com um comunista é um de meus preferidos.

    Leave A Reply