Assim como nos filmes, livros também têm momentos preferidos, aquelas frases, parágrafos ou capítulos inteiros que causam em nós a sensação de presenciar as melhores coisas do mundo, um exemplo já tão usado, mas muito eficaz é aquela famosa frase (sabe-se lá de quem é) dita após um momento de felicidade completa: “Já posso morrer agora”.
Um livro que me causou essa sensação diversas vezes foi “A obscena senhora D.”, da incrível Hilda Hilst. Perdi o chão em diversos momentos, tanto pelo texto, que diz tantas coisas lindas, profundas e, principalmente, provocam, quanto pelas formas gramaticais de Hilda Hilst.
Selecionei um trecho da página 56, onde mais da metade da narração psicológica já havia passado. Senhora D., relacionando a perda de seu marido, o amante, sua idade e o estado de loucura-compreensão, dispara essa pérola filosófica, gramatical, pura e magnifica:
“Sessenta anos vulgares e um único aspirar, suspenso, aspirei vilas, cidades, nomes, conheci um rosto sem face, um homem sem umbigo, um animal que falava e os olhos mordiam, uma criança que deu dois passos e contornou o mundo, um velho que esquadrinhou o mundo mas quando voltou à casa viu que não tinha saído do primeiro degrau de sua escada, vi alguém privado de sentimentos, nulo, sozinho, como Tu mesmo Menino-Porco, era esticado e leve, era rosado, e não sentia absolutamente nada, um dia na praia começou a correr em direção ao mar, mergulhou, e nunca mais emergiu (…).”
p. 56
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O que mais me chamou a atenção na leitura do livro A Obsccena Senhora D. foi o trecho “uma criança que deu dois passos e contornou o mundo, um velho que esquadrinhou o mundo mas quando voltou à casa viu que não tinha saído do primeiro degrau de sua escada”. É preciso atenção aos caminhos que estamos percorrendo, alguns acontecem sem percebermos e de repente contornamos o mundo, como a criança de Hilda Hilst. Em outros momentos porém, damos tanta atenção a algo aparentemente especial, ou nos sentimos tão bem com alguma conquista mas que, ao parar para pensar, a viagem não nos trouxe nada demais, não agregou, não permitiu que saíssemos do primeiro degrau da escada.