Neste ano, apesar do falecimento do Neil Peart, os fãs do músico foram agraciados com o publicação no Brasil do livro Música para Viagem: a trilha sonora da minha vida e do meu tempo pela editora Belas Letras, com tradução de Candice Soldatelli. A obra foi dividida em dois volumes: o primeiro, lançado em março, já foi resenhado por mim e você pode ler meus comentários aqui. E agora, com o segundo volume, pudemos matar um pouquinho das saudades que sentimos pelo nosso grande baterista e continuar a viagem com muitas histórias e músicas!

    Nessa segunda parte, chegamos ao parque nacional Big Bend, mas também o seguimos pela sua estadia na Inglaterra dos anos 70, suas experiências com drogas e a desilusão com a indústria musical que o trouxe de volta ao Canadá, onde, finalmente conseguiu fazer o teste para entrar numa banda iniciante, uma tal de Rush. Aliás, para quem curte o power trio, é emocionante vê-lo relembrar a simbiose que os músicos tiveram desde o início e que durou décadas: “Enquanto Geddy, Alex e eu tocávamos juntos, pareceu que correspondíamos às ‘energias’ um dos outro imediatamente, e também depois quando nos sentamos no show conversando sobre Monty Python’s Flying Circus, O Senhor dos Anéis e as bandas que gostávamos.” (p. 35).

    Em comparação aos seus outros livros, incluindo o primeiro volume, em Música para Viagem – Volume 2 Neil traz muito mais experiências envolvendo a banda, além de comentar sobre seu processo de composição de músicas, como a ótima Middletown Dreams (de Power Windows, de 1985), a sua relação com álbuns gravados pelo Rush, as influências do cenário musical nos discos, entre outros.

    E nesta obra, o que mais me chamou a atenção foi a dedicação à música e o profissionalismo de Neil Peart. Não que isso seja uma surpresa: quem acompanhou a sua carreira sabe o quanto o seu perfeccionismo e trabalho incansável foram fatores cruciais para ele ser considerado o melhor baterista do mundo. Música para Viagem, mais do que focar nas viagens em si – chegaremos lá – é uma defesa da integridade musical, uma declaração de amor à música.

    “Com certa frequência, um estilo de música antes desconhecido para mim acaba me conquistando por causa de um único músico. Um violeiro furioso de um quarteto gypsy tocando num bistrô em Paris, um baixista de um grupo de reggae caribenho, um violinista ousado na Praça de São Marcos em Veneza, ou um africano tocando um pedaço de latão com os dedos e uma varinha; até mesmo aquele fluxo de ritmo sutil e expressivo por trás de um coro da vila era inegavelmente a voz de um artista. Esses músicos talentosos e totalmente comprometidos conseguiam dedicar suas vidas inteiras à música e, por causa disso havia essa completa paixão existencial que fazia parte da performance, tanta vida e tanta paixão irradiavam dela.”

    “Música para viagem – volume 2”, p. 57.

    Trata-se de talento, de sagacidade, de uma pitada de sorte, mas principalmente de trabalho duro. E o músico nos lembra sempre sobre isto: “você levanta de manhã e vai para o trabalho”, uma máxima que ele adotou desde cedo, trabalhando no estoque de peças de implementos agrícolas no Canadá e nas lojas de souvenir em Carnaby Street, em Londres, tocando baterias por horas e horas nas longas turnês com o Rush, compondo músicas, escrevendo livros, tentando sobreviver e ressignificar a vida após a perda de sua família, embarcando em longas viagens pelo mundo.

    E que viagens! Ler os escritos do Neil Peart é como estar diante de uma enciclopédia que nos leva a muitos lugares, histórias, pessoas. Temos observação de pássaros (e agora eu estou grata por ter conhecido, pela leitura, o papa-moscas-vermelhão). Também acessamos suas observações sobre as diferenças políticas e ideológicas entre Santa Mônica e Texas em torno da Guerra do Iraque, em 2003. Viajamos pelo México e assistimos de camarote uma apresentação dos mariachis. Chegamos a lugares remotos no continente africano, o que é bastante interessante, porque Peart retoma sua viagem de bicicleta que começou em Camarões, retratada no livro O ciclista mascarado (que eu resenhei aqui), e nos faz acompanhá-lo pela África Ocidental, em uma jornada de autoconhecimento, ou num processo de “purificação de valores ocidentais”, como preferia chamar.

    Apreciem o papa-moscas-vermelhão!

    E todas essas memórias, por lugares e épocas diferentes, são acompanhadas, obviamente, pelas músicas do CD Player do Neil. Coldplay, Madonna, Linkin Park, um pouco mais de Frank Sinatra, Radiohead, Rush… músicas que surgiram de um coração humano, como Neil faz questão de pontuar, e que ecoam pelo espaço, pelo tempo e em outros corações humanos.

    Música para viagem consegue, numa narrativa tão própria, trazer vivências de um homem e de um músico em constante busca por significado e crescimento. É um lembrete do que significa ser alguém íntegro diante de um mundo que parece prezar pelo superficial, descartável e mentiroso.

    “Não quero dizer que a simples passagem do tempo significasse que o trabalho de determinado artista necessariamente ficava melhor; não tinha que ser um progresso qualitativo, mas certamente um progresso cronológico. A vida não pode ser vista de qualquer outra forma que não seja como uma progressão – para a frente, e talvez necessariamente para cima – e acontece que a obra também tinha que ser vista dessa forma. Para mim, cada marco, cada ponto de referência era necessariamente progressivo, refletindo o que eu tinha aprendido musicalmente como baterista e o que eu tinha aprendido existencialmente como letrista. Como meu amigo Mendelson Joe disse: ‘ A arte não mente’. E como isso era particularmente verdadeiro nos casos em que tentaram mentir – fingindo ser algo que não eram para atrair um público que não mereciam. Isso é o que realmente significa ser ‘pretensioso’.”

    “Música para viagem – volume 2”, p. 110.

    E isso não vale apenas para os artistas…

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