“Egoísta”. “Fracassado”. “Fraco”. “Sem Deus no coração”. “Só quer chamar a atenção”. Você, que está me lendo, já deve ter escutado ou até falado essas expressões diante de um assunto ainda tabu: o suicídio, tema tratado no livro Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio, de Andrew Solomon, lançado pela Companhia das Letras em 2019.

    Ainda que os tópicos sobre saúde mental estejam ganhando a devida atenção, o suicídio permanece carregado de máculas, especialmente religiosas: o pecado de atentar contra a própria vida, sagrada, seria inconcebível, mortal, podendo condenar o suicida ao inferno. Já o jornalismo adota uma série de medidas para evitar expor os casos em detalhes, o que, por outro lado, pode dar a impressão de que este não é um grave problema social. Mas é. Entre 2011 e 2018, houve um crescimento de 10% nas taxas de suicídio entre jovens de 15 a 29 anos no país. O maior aumento ocorreu entre 2016 e 2017, segundo o Perfil Epidemiológico divulgado em setembro de 2019 pelo Ministério da Saúde. Em todo o mundo, a morte por lesão autoinfligida ou autoprovocada intencionalmente, como o suicídio é chamado nas estatísticas, já se tornou a segunda causa de óbitos de jovens, perdendo apenas para acidentes de trânsito, como mostram os dados da Organização Mundial da Saúde.

    Enquanto isso, filmes e séries ainda parecem romantizar os suicidas, mas só quem já passou por essa situação sabe o que realmente significa enfrentar o estigma do suicídio, os olhares julgadores de uns, de pena, de outros, e de indiferença, de muitos. 

    Um crime da solidão?

    A coletânea, composta por artigos e ensaios publicados nos últimos anos por Andrew Solomon, traz a sensibilidade e a empatia que marcam todos os seus demais livros. Aqui, ele retoma a difícil relação entre o suicídio e a depressão, assunto muito caro já tratado no excelente e necessário O demônio do meio-dia, considerado um dos 100 livros mais importantes da década de 2000. Digo difícil relação porque nem tudo é tão óbvio. Uma pessoa deprimida não será, necessariamente, suicida; uma pessoa alegre o tempo todo pode não ser feliz; assim como uma pessoa rica ou bem sucedida, sem doenças psicológicas aparentes, pode ser diversos outros problemas que a levam ao suicídio. 

    São vários os casos em que o suicídio se torna uma “solução”, com um grande poder de sedução, como diz o autor. E em Um crime da solidão, Solomon novamente parte de experiências pessoais, entrevistas e estudos para tratar o assunto.  Conhecemos seu amigo da época de faculdade, Terry, um homem que transparecia uma felicidade constante, mas tirou a sua vida próximo aos 50 anos. 
    Também acompanhamos o triste relato sobre a mãe do autor, que decidiu encerrar seu sofrimento, com a ajuda da família, após uma batalha contra o câncer. Este é um capítulo ao mesmo tempo dilacerante e belo – uma escrita característica de Solomon.

    Suicídio: o mal que atinge a todos

    O livro também apresenta reflexões sobre casos de suicídio de personalidades, como o chef Anthony Bourdain, a designer de moda Kate Spade e o ator Robin Williams. E o autor lança uma pergunta: “se a vida não valia a pena para pessoas como Bourdain e Kate, como nossas vidas mais comuns vão resistir?”. De fato, não é fácil entender os mecanismos que levam alguém a tirar a vida, já que existe junção de fatores que podem envolver doenças mentais e circunstâncias da vida. Mesmo a busca de um alívio por meio da linguagem e da arte, como nos casos de Virginia Woolf e Sylvia Plath, encontra os seus limites. O suicídio nos coloca diante do sofrimento intolerável, contra o qual não há respostas e soluções mágicas. Todos nós estamos vulneráveis:

    “O suicídio de Williams demonstra que nenhum de nós está imune. Se é possível ser Robin Williams e ainda assim querer se matar, então todos nós estamos expostos à mesma assustadora vulnerabilidade. A maioria das pessoas imagina que resolver determinados problemas as fará mais felizes. Ah, se eu tivesse um pouco mais de dinheiro, ou de amor, ou de sucesso… eu lidaria melhor com a vida. Pode ser devastador perceber como é falso esse otimismo condicionado. Uma grande esperança é esmagada toda vez que alguém nos lembra que a felicidade não pode ser nem presumida nem adquirida; que somos todos prisioneiros do nosso próprio cérebro defeituoso; que a solidão fundamental em cada um de nós é, em última análise, inviolável.”

    “Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio”, p. 48.

    Uma epidemia oculta

    A leitura de todo o livro é um exercício de empatia. Particularmente no capítulo sobre o suicídio da mãe de Solomon, nos vemos diante de uma experiência dura e triste, mas também de alívio e de (re)conhecimento. Os textos também permitem uma compreensão das diversas facetas que envolvem o tema, sem cair em julgamentos ou falsas esperanças.

    Falar sobre suicídio significa mexer em problemas complexos que vão além da luta de um indivíduo contra os seus demônios internos. Significa pensar em que sociedade vivemos, dentro dessa dinâmica que nos adoece, mata e substitui, especialmente nos dias de hoje, tão instáveis e desesperadores. Significa também pensar em políticas públicas, segurança social, relações de trabalho e interpessoais… Exige, enfim, derrubar todo um sistema feito para matar e para inviabilizar uma vida digna para todas e todos.

    Se o suicídio pode operar como solução no plano individual, ele nos alerta para o nosso fracasso coletivo e a nossa incapacidade de ajudar e permitir outras experiências de vida.

    “No cenário nacional, temos visto uma aceitação do preconceito e da intolerância, e isso afeta o estado de espírito de todos os cidadãos. Meu psicanalista disse que nunca nenhum de seus pacientes discutiu política nacional tão reiteradamente, sessão após sessão, como agora. Existe uma contínua tensão de ansiedade e medo de um lado, e brutalidade de outro. O ódio é deprimente – ser odiado, claro, é deprimente, mas odiar também é. O desgaste da rede de segurança social significa que mais e mais pessoas atingiram um ponto de súbita ruptura, e poucas mensagens de autêntico conforto lhes podem ser oferecidas nestes tempos impiedosos. Vive-se a exaustão pela doença, pelo isolamento, pelo desespero e pela crise existencial. No momento, a vulnerabilidade das pessoas é exacerbada pela dureza que se manifesta nas manchetes de todos os dias. Sentimos tanto a nossa angústia como a angústia do mundo. Há uma escassez de empatia, até mesmo de bondade, no debate nacional, e esse déficit transforma a neurose comum em um desespero capaz de levar à ação.” 

    “Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio”, p. 43.

    Sobre o autor

    um crime da solidão

    Andrew Solomon nasceu em Nova York, em 1963. Formou-se em inglês e literatura na Universidade Yale e obteve mestrado e doutorado, este na área de psicologia, pela Universidade de Cambridge. É consultor especial de saúde mental LGBT em Yale e professor de psicologia clínica no Columbia University Medical Center. Escritor, ativista e conferencista, é autor, entre outros, de Longe da árvore e O demônio do meio-dia, que venceu o National Book Award de 2001 e é considerado um dos cem livros mais importantes da última década pelo jornal The Times.

    www.andrewsolomon.com

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