Quando nos deparamos com um livro cuja capa anuncia “best-seller”, temos duas reações diferentes. Há aquele leitor que se coloca num patamar mais nobre e que não se permite ler esse tipo de livro; e aqueles que compram o livro justamente por causa do rótulo. Resultado: o livro é muito comprado e pouco lido. É ótimo para o autor, eu diria.

    Lembro de uma vez, enquanto trabalhava com uma recém conhecida e começamos a conversar sobre livros. Na época, comentei que gostava do livro O Código da Vinci, do Dan Brown (Santo Graal dos best-sellers). Ela respondeu que preferia Goethe. Ulala! Eu me senti até meio para baixo. O processo de amadurecimento da leitura é cheio de pedantismo. É como aquela pessoa que acabou de descobrir o vinho, ou a cerveja artesanal. Ela precisa dizer o tempo inteiro sobre a qualidade da bebida e tentar provar que seu paladar realmente ficou mais refinado.

    Acho que a leitura ou, por exemplo, a apreciação de um filme passa por um processo parecido. Começamos gostando de bebidas doces e suaves, como o vinho doce (credo!), depois passamos para algo mais amargo como a cerveja (mesmo aquelas mais baratas, fracas, quase refrigerantes). Em algum momento, a gente conhece uma pessoa já adiantada nos prazeres adultos e, pra não ficar para trás, começamos a nos aventurar em coisas mais requintadas. É nesse momento que paramos para assistir Bergman e Tarkovski; a ler Flaubert e Tolstói. Invariavelmente, ficamos fechados em um grupinho seleto, com meia dúzia de iluminados, e todo o resto parece muito superficial (é tudo Indústria Cultural!)

    Chega um momento (às vezes) em que a gente cansa disso tudo, ou entende que falar com outras pessoas também é necessário, e volta a dar uns goles naquela cervejinha ruim, mas que gelada vai bem. Outros, mais exagerados, resolvem que tudo isso é coisa de elite cultural e se volta para o “populacho” quase como uma forma política de dizer que é uma pessoa do povo, vide a fúria das redes sociais pelo BBB, ou a febre dos jovens pelo Barões da Pisadinha. (Não faço nenhum juízo disso. Cada um que assista e ouça o que bem entender).

    Acadêmico lendo…

    Eu tenho que assumir, porém, que sou um bicho da Academia. Em São Paulo, a Academia é mais ou menos herdeira da mesma forma de pensamento: algo assim meio afrancesado – estando na USP ou não. Recentemente, em uma conversa com uma professora italiana que dá aula em Los Angeles, ela falou de uma diferença interessante entre leitores europeus e estadunidenses. Os primeiros entendem que o autor de um livro faz um favor ao mundo contribuindo com seu texto e são os leitores que precisam fazer um esforço para entendê-lo; os da terra do Tio Sam, ao contrário, entendem que quem faz o favor é o leitor que se dispõe a ler o livro e, portanto, o autor precisa se esforçar para ser entendido. Apesar de culturalmente sermos muito mais influenciados pelos Estados Unidos – e também politicamente, haja vista as pautas políticas tanto à esquerda quanto à direita -, a Academia paulistana é bastante europeizada. Não é de se estranhar, por exemplo, encontrar professores da USP escrevendo que a escrita da História precisa ser difícil porque é assim que se faz História.

    Com esse background, quando alguém oriundo da Academia se depara com um best-seller tem um colapso. A analogia é: livro fácil de ler é igual à superficialidade, falta de rigor, ou qualquer coisa assim. Não acho que a qualidade da escrita esteja relacionada com a honestidade intelectual de quem escreve. Eric Hobsbawm, um deus para historiadores, é, para mim, intragável de ler. Em todo caso, se quero estudar História Contemporânea, terei que passar por ele de um jeito ou de outro, mas como seria bom se ele desse uma ajudinha, não é mesmo? No outro extremo, Laurentino Gomes (que não é historiador) escreve um bom texto, mas basicamente o recusamos. Claro, são propósitos diferentes: o primeiro é historiador e escreve para o seu nicho; o segundo escreve para qualquer um que quiser ler. Acontece que só o segundo é lido pela grande maioria, enquanto o primeiro é tema de discussão em sala de aula de universidade pública e, geralmente, esse debate sequer chega à sala de aula do Ensino Fundamental e Médio, nem vira tema de questão de vestibular: fica restrito ao departamento, a revistas de artigos científicos, às pessoas que decidem quem vai ganhar, ou não, uma bolsa de pesquisa.

    Enfim, o best-seller

    É possível que o grande best-seller dos últimos anos seja o Sapiens: uma breve história da humanidade, do Yuval Noah Harari. Você consegue encontrar esse livro em basicamente qualquer lugar do mundo, desde livrarias e bancas de jornal a lojas de conveniências em posto de gasolina. Não é um livro de História ou Filosofia, mas é um livro que conta uma história, a do homo sapiens.

    SAPIENS
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    O autor (que é historiador) apoia sua narrativa em três grandes revoluções: a cognitiva, a agrária e a científica. É um voo rasante pela história do homo sapiens, que compreende a vitória sobre as outras espécies (homo erectus, homo de neandertal…); a passagem da vida de coletores à sedentária; as primeiras organizações entre humanos; a descoberta da escrita etc. Em geral, se o leitor não for um especialista, ou entusiasta do tema, tudo vai ser uma descoberta interessante. E é por isso que o livro faz a gente querer lê-lo até o final. Tudo isso, é claro, escrito de forma muito clara, já que o objetivo do texto é ser entendido.

    Há ainda um ponto do livro que merece destaque. O autor tem uma espécie de tese. Ele argumenta que a diferença da espécie homo sapiens para todas as outras é sua capacidade de imaginação. Temos a incrível capacidade de acreditar em algo que não conseguimos ver.

    Essa é uma ideia pouco polêmica se você adotá-la para analisar os povos antigos que acreditavam que um deus específico cuidava das forças da natureza. Ou, naqueles que acreditam em um Deus criador que não apenas criou tudo, mas também deixou indícios da sua criação, como leis naturais inscritas no ser humano. Para o autor, tudo isso é uma ficção que nós mesmo criamos para nos organizar no mundo, para sobreviver a ele, uma vez que entre todos os animais somos os mais fracos, que não resistiriam a poucos dias numa selva. Já que não temos garras para competir com um leão pelo almoço, temos que utilizar a nossa inteligência criadora para superá-lo.

    Até aí tudo bem, nada de muito polêmico. Mas o autor dá o passo que a gente normalmente não aceita. Os direitos humanos, a democracia, a liberdade, a constituição, o cidadão… tudo isso é também uma ficção. Isso quer dizer que as coisas não existem? Não. As coisas existem, porém a forma que utilizamos para entendê-las é uma ficção, seja uma pedra que acreditamos ser sagrada ou um par de leis que dizemos ser a constituição do país. E como somos seres limitados, isto é, não possuímos muita capacidade de memória e em algum momento vamos morrer, essas ficções precisam ser o tempo inteiro reafirmadas. Por isso, essas ficções estão sempre em disputa: uns querem destruí-la, outros reformá-la. Tanto com o Deus criador como com uma ideologia moderna (capitalismo, comunismo, liberalismo), essas ficções conseguem adeptos que acreditam genuinamente nelas, a ponto até de usarem a violência contra aqueles que as desrespeitam.

    Esse tipo de interpretação pega mal para o nosso tempo. Ainda mais depois de Donald Trump, Bolsonaro e as fake news. Mas qual é realmente o problema? Não sei. Entretanto, para mim, tanto faz se for os dez mandamentos, a constituição americana ou os direitos humanos, o importante é que a gente não se mate. Isso garante que as pessoas não cometam todos os tipos de crimes? É evidente que não. Mas, de alguma forma, essas ficções garantem que cometer um crime não seja considerado algo belo, louvável, pelo qual você deva receber um prêmio. E se isso acontecer, como quando um atirador de elite é premiado pelo massacre em uma guerra, achamos que isso é o fim do mundo.

    Só por essa abordagem de Yuval Noah Harari já vale a leitura do livro Sapiens. Talvez um problema que possa ser levantado de sua tese é que o autor não a passa pelo próprio crivo da ficção. Quero dizer, a ciência é também uma ficção. A pedra lançada ao ar vai cair queremos ou não, mas sem o ser humano para interpretar tal fenômeno será apenas uma pedra rolando.


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