Escritores africanos têm se destacado no mercado editorial da língua portuguesa e de outras línguas, e um deles é Ondjaki, escritor angolano premiado, finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2010 e membro da União dos Escritores Angolanos. “E se Amanhã o Medo” (Língua Geral, 120 páginas), seu último livro publicado no Brasil, traz vinte breves contos que podem ser vistos como uma pequena amostra de um grande talento.

    Lançado na Coleção Ponta de Lança da editora Língua Geral (editora brasileira voltada especificamente para obras escritas em língua portuguesa de todos os países que a mantêm), o livro revela muito da técnica e estilo poéticos de Ondjaki. Divididos em duas partes, “Horas tranquilas” e “Conchas escuras”, os contos, mesmo que curtos, são de extensos significados e profundidade. Ambos os títulos, emprestados do romance “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar, cujo trecho é a epígrafe da obra e tem entre seus nomes da dedicatória o escritor brasileiro, aludem exatamente à atmosfera das histórias.

    Horas tranquilas” abre o livro e se estende por quase todo ele, em quinze narrativas, entre médias e pequenas, ora descritivas, ora filosóficas, ora extremamente poéticas e visuais, sinestésicas, ora mágicas e improváveis. Aqui os contos são mais explorados em seu sentido lógico, ainda que mantenham uma intensa realidade fantástica que levam o leitor para onde bem querem. Cada um tem vida própria, significado próprio e sobretudo individualidade, porque são muito diferentes um do outro. Nesta parte, o escritor angolano mostra mais diálogos, transmite a mesma sensação nauseante e perigosa diante de algo desconhecido, novo, e melhor ainda, descreve este novo, improvável e mágico, como comum, de forma simples e possível. As figuras de linguagem enchem cada parágrafo e às vezes esquecemos que estamos diante de uma prosa, porque ela não é prosa, mas poesia disfarçada de.

    Ondjak

    Além da própria escrita, lapidada com cuidado e adjetivada de forma magistral, referências musicais, como da cantora brasileira Adriana Calcanhoto no conto “A libélula”, e literárias, como da obra “O Cristo Recrucificado” de Nikos Kazantzakis em “Coração de porco”, são salpicadas entre a narração como forma de enriquecimento dela e ênfase de seu significado último — mesmo que não venhamos a sabê-lo completamente. Isso é o que Ondjaki faz: brinca com nossos sentidos de real e imaginário, pergunta pela impossibilidade e desaparece sem deixar rastros ou respostas.

    Conchas escuras” encerra o livro com outros cinco contos tão carregados de escuridão e mistério quanto o título da parte a que pertencem. Enquanto a parte anterior revela sutileza, poesia e mais clareza (mesmo sem as tais respostas), esta é descritiva, mais real, mais palpável, mas ainda com o mesmo realismo fantástico. Aqui, os contos não têm diálogos, são escritos na maior parte em parágrafos longos e com forte apelo visual, como em “Madrugada”, em que uma moradora de rua é estuprada pelo dedo de um homem, ou em “A velha”, no qual uma mulher estanca seu próprio tempo e não morre, apenas tem seu corpo gasto e envelhecido enquanto o narrador decide matá-la com veneno de rato para aliviar sua prisão de si mesma. Ao passo que aquela parte nos dá uma sutil sensação de nó na garganta, tirando ligeiramente nosso fôlego com seu desprendimento para com a habitual obviedade a que estamos acostumados, esta, mesmo não nos mostrando o todo, é com certeza mais detalhista, densa e inacabada.

    Talvez todos os vinte contos de “E se Amanhã o Medo” tenham propositalmente esta ideia de inacabado, e por isso mesmo possível de continuidade, de estarem vivos porque são reais —magicamente reais. Não existe um único enredo pacífico que encontre sua ilha deserta e por lá viva harmonicamente, porque todos são lançados ao mar de possibilidades fora das páginas, longe do que está impresso, longe dos montes de terra seguros, jogados, assim, exatamente para terem essa textura inconstante como a vida o é.

    Os contos, mesmo que poéticos, referenciais e metafóricos, escritos de uma forma não tão óbvia, são, em sua essência, simples. Têm aquela atmosfera de círculo de amigos em volta de uma fogueira, a noite funda e uma lua cheia ouvindo cada testemunho narrado não só por bocas em tons pausados e frases entrecortadas, mas olhares ardidos de ansiedade e descrença. Ondjaki conta com os dedos, nós ouvimos com os olhos e o próprio livro se mostra fascinado em ser a ponte perfeita que nos leva para realidades inventadas.

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