A solidão dos números primos: um livro para adolescentes? Não: um livro com adolescentes que se desenvolvem fisicamente ao longo da narrativa, mas que deixam o emocional quase estagnado onde deram início suas crises particulares.

    Mais do que um estado de isolamento, em que o sujeito experimenta sua própria companhia, a solidão é também uma espécie de liberdade truncada e inconstante, aberta às surpresas e acasos da vida, e por isso mesmo passível a tudo. Na maioria das vezes pensamos na solidão como algo triste, indesejado, uma condição humana causal de uma sociedade individualista que quer cada vez mais espaço e menos presença — até mesmo de si, por que não? Mas ela também pode ser, se encarada ou “tratada” como fase, uma saudável oportunidade de observar o mundo com um olhar distante e ainda assim muito íntimo, particular, em busca de algo que se está à procura, embora não se saiba bem o quê. Em alguns casos a solidão é escolha absoluta e consciente, e disso trata o romance do italiano Paolo Giordano, “A Solidão dos Números Primos” (Editora Rocco, 288 páginas, tradução de Y. A. Figueiredo).

    A solidão dos números primos
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    Numa extremidade do romance está Mattia Balossino, um garoto que cresce com uma secreta parcela de solidão por causa de Michela, sua irmã gêmea mentalmente doente, da qual se envergonha. Aqui seu mundo solitário é autogerado a partir desta vergonha e do distanciamento que ele mesmo provoca com os colegas e conhecidos. Convidados para a festa de um colega de sala com o qual têm pouquíssimo contato, os irmãos Balossino se separam a caminho da festa. Mattia, preocupado com o possível comportamento de Michela, (“Ela vai deixar cair todas as batatas fritas no chão.”), deixa a irmã numa praça dizendo que voltará logo. Mas quando volta, a praça está vazia e escura, como fica seu coração por muitos anos seguintes. A narração avança um ano após o desaparecimento e mostra um Mattia ainda mais introspectivo, obscuro, marcado pelas cicatrizes de uma frustrada tentativa de suicídio.

    Na outra extremidade desta tensa corda está Alice Della Rocca, dando início à narração que Paolo tece paralelamente à de Mattia. Obrigada pelo pai a frequentar uma escola de esqui, inesperada e finalmente Alice se vê livre das aulas ao sofrer um acidente na neve. O dano é irreparável, ela fica manca, e assim como Mattia, leva consigo uma cicatriz entre a perna e a barriga, que por sua vez forma um conjunto de magras estruturas com seus seios e nádegas, diferentemente das bochechas, “dois redondos travesseiros de criança”. Logo antes da trágica aula, o autor revela a repulsa de Alice pela comida e aos poucos seu grave distúrbio alimentar vai se apresentando ao leitor e sendo explicado circunstancialmente como parte intrínseca da personalidade da personagem. Mais do que pelo medo de engordar, sua negação a todos os tipos de alimento é resultado de uma solidão experimentada na escola e de uma secreta vontade de ser como Violetta, a garota mais popular dela.

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    A partir dos conflitos já apresentados no começo da narrativa, Paolo acrescenta outros personagens que servem indiretamente como influência nas fortalezas quase inexpugnáveis criadas pelos protagonistas. De um lado Violetta, em quem Alice se espelha e se torna amiga, do outro lado Denis, que sente um intenso amor platônico por Mattia quando este muda de escola e finalmente conhece Alice, com quem tem uma estranha e silenciosa relação de respeito e incongruências comportamentais, além de, é claro, a paixão mal-resolvida explorada na história.

    A partir da confusa e insegura adolescência, sonhos são revelados e trabalhados, também como características únicas e sem as quais os protagonistas parecem não conseguir viver. Enquanto crescem e descobrem o solitário mundo a que pertencem, Alice se entrega à paixão pela fotografia e Mattia pelos números, pela matemática e física. “A Solidão dos Números Primos” começa num círculo no ano de 1983 que tenta mas não consegue se fechar em 2007.

    Tristeza, solidão, incertezas, medos e estreitos instantes de alegria são carregados ao longo desses vinte e quatro anos: ela se alimentando cada vez menos, ele sendo atraído por objetos cortantes cada vez mais, e cada vez mais também sendo testado com as formas geométricas e os pontos quantitativos dos ambientes em que se encontra. Ambos são complexos e difíceis, precisam de apoio que ao mesmo tempo negam com veemência, e aos poucos seus mundos se chocam — entre si e em outros que desenham seus destinos.

    Como descrito no capítulo 21, Alice e Mattia são como dois números primos, mas da classe dos números primos gêmeos: “são casais de números primos que estão lado a lado, ou melhor, quase próximos, porque entre eles sempre há um número par, que os impede de tocar-se verdadeiramente”. E é nesse mundo matemático e físico, comparativo-explicativo, natural de Paolo cuja formação é Física, que os personagens tentam descobrir um ao outro e a si mesmos, entre encontros desencontrados e desencontros estranhamente planejados. É nessa busca pelo impossível que a história consegue existir e perguntar o que realmente é possível e o que não é, o que é palpável e o que não é, e o mais importante: até que ponto uma escolha é visivelmente certa e em qual momento desta escolha as sensações opostas podem se encontrar e produzir novas dúvidas.

    No último capítulo, Paolo encerra sua força sutil de narração respondendo ao destino dos personagens com o trecho de uma música de Damien Rice. O leitor mais atento subitamente entende que a vida é uma fila interminável de possibilidades que ou nos esperam, ou que nós mesmos colocamos no caminho para chegar a um resultado. Comumente, os resultados são variados e isso torna tudo mais interessante, assim como o antidesfecho desta história.

    Um livro para adolescentes? Não: um livro com adolescentes que se desenvolvem fisicamente ao longo da narrativa, mas que deixam o emocional quase estagnado onde deram início suas crises particulares. À primeira vista ele possui uma linguagem fácil, pouco trabalhada, sem aforismos e pretensões líricas, sentimentos descritos mais com comparação do que com metáforas, embora muitas vezes o suspense invada uma página e os inícios dos capítulos sejam mais elaborados e poéticos.

    É na simplicidade que Paolo Giordano parece acertar, tendo inclusive ganho o Prêmio Strega em 2009 por isso. A narração, de tão sólida e sutil, ganha a atenção do leitor porque é muito realista, muito humana, e aborda todos estes sentimentos de caráter fragmentário e quase intraduzível cuja fragilidade é inerente à maioria.

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    4 Comentários

    1. Oi, Alister!
      Muito obrigada por sua visita e comentários!
      Esse livro é muito bom mesmo! Mas o blog Livro&Café não tem parceria com essa editora…

      Você já viu o filme? Ouvi dizer que é muito bom também.

      Beijos.

    2. Muito boa sua resenha, li esse livro já fazem uns dois anos e gostei muito. Assisti o filme também, como sempre não é tão bom quanto o livro, mas dando os devidos descontos da transição do papel para o celuloide fica uma obra interessante.

    3. Tem filme também? óóóóó Sonhei com o livro essa noite, sério, não ‘tô mentindo. Sempre sonho que qualquer lugar vira uma livraria e sempre tem o livro que eu quero, e nunca acontece nada com respeito a dinheiro no sonho…

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