Foi na última década do século XIX que James, durante um jantar, soube de um novo e curioso caso tutelar que seria a espinha dorsal de seu romance “What Maisie Knew”, relançado no Brasil sob o título “Pelos Olhos de Maisie

    Um escritor talentoso é aquele que além de usar com perspicácia um fato possível de ser ficcionado, construindo-o a sua maneira, tem consciência prévia da importância da observação desse fato antes dele se tornar ficção. A inspiração na literatura é uma corrente com elos feitos de possibilidades narrativas, que juntas formam uma história, e ela pode vir de uma conversa na praia, um dedo perfurado por uma agulha, um doce derrubado sobre um alvejado vestido, ou, como no caso do escritor americano Henry James, de um jantar com amigos.

    Foi na última década do século XIX que James, durante um jantar, soube de um novo e curioso caso tutelar que seria a espinha dorsal de seu romance “What Maisie Knew”, relançado no Brasil sob o título “Pelos Olhos de Maisie” como uma das primeiras obras que inauguraram o selo Penguin Companhia, junção das editoras Penguin Books e Companhia das Letras. O volume, primorosamente traduzido por Paulo Henriques Britto, conta com mais de 400 páginas divididas em introdução, romance, cinco resenhas da época em que o livro foi publicado, cronologia e comentários tanto do escritor sobre seu processo criativo quanto dos editores e do tradutor

    “A criança foi dividida em duas, e as porções foram entregues aos querelantes de modo imparcial. Cada um ficaria com a filha, alternadamente, por períodos de seis meses; assim, ela passaria metade do ano com o pai, metade com a mãe.”

    p. 34

    A figura central: Maisie Farange

    Maisie Farange é a figura dicotômica central do romance, a “menininha”, como é chamada várias vezes no começo do livro de modo que o leitor sinta a inocência de sua tenra idade nunca revelada. É através de seus olhos e de sua compreensão do mundo que Henry James narra a história de Maisie, sem, no entanto, representar a voz da menina e discursar em primeira pessoa.

    Em “Pelos Olhos de Maisie”, o autor narra do ponto de vista dela, mas com sua própria voz, muitas vezes intrometida na narrativa para nos alertar ou lembrar de algo. Seus pais, Beale e Ida Farange, se divorciam e a partir daí a menina se divide continuamente entre duas casas num terrível jogo de ofensas. Enquanto que na casa do pai as cartas recebidas da mãe (cujo epíteto “grandessíssima vaca” chega aos seus ouvidos) são atiradas acintosamente no fogo da lareira, na casa desta o pai é chamado de biltre e todos os seus defeitos são explorados como numa aula de antietiqueta diante da filha.

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    Desde o início os inescrupulosos pais não tinham interesse na situação pelo bem que pudessem fazer a Maisie, “mas pelo mal que, com a ajuda inconsciente dela, cada um poderia fazer ao outro” (p. 35). “Pobre criatura!” passa a ser o “epitáfio para o túmulo da infância” da menina, cuja educação fica sob os cuidados de duas governantas, uma em cada casa.

    Logo Maisie conclui que “estava atuando como um polo de ódios e uma mensageira de insultos, e que tudo ia mal porque ela fora usada para esse fim” (pag. 45), e quando parece que este ligeiro início de romance tratará da menina apenas como uma peteca com a qual dois sórdidos adultos brincam de calculadas distâncias, a governanta de Ida foge para a casa de Beale sob o pretexto de sentir saudade de Maisie e logo se casa com seu pai.

    Por outro lado, Ida contrata uma nova governanta, a sra. Wix (com quem Maisie cria um laço mais forte do que o que tem com a mãe), e passa a morar com um homem muito mais novo que conheceu durante uma viagem (este também se torna centro dos olhares mais deslumbrados e dos sentimentos mais munificentes da menina).

    A técnica que insinua em vez de explicar

    pelos olhos de maise
    Edição da Companhia das Letras

    Então parece que Henry James chega ao cúmulo da família quadriparental mais a sra. Wix, uma governanta no papel de uma boa avó que prepara leite com biscoitos e tem colo de sobra para uma criança carente, contudo ele não para por aí. Ao longo do romance Maisie desperta para esta nova vida ao mesmo tempo em que, através da implicatura, técnica narrativa que insinua em vez de explicitar, criando lacunas e silêncios, olhares e diálogos subjetivos, acontece a ultrapassagem do limite que o leitor acredita já existir: os cônjuges dos Farange, ou o segundo pai e a segunda mãe de Maisie, passam a formar outro casal, oblíquo, ardiloso, que se encontra sempre nas entrelinhas, esses escuros vãos onde os olhos do leitor demoram a cair.

    Com o novo caso descoberto pelos pais de Maisie, cada um se vale de outros amantes: Beale Farange de mulheres ricas que o sustentam, Ida de homens que carregam condecorações e epítetos que nada enaltecem realmente seus estranhos caráteres. Na verdade, todo caráter, personalidade e humor dos personagens criados por Henry James beiram o nebuloso, o histérico, o falso e o pretensioso. Todos, desde os pais até os cônjuges, passando pelas governantas e até os novos parceiros dos pais, todos parecem um tanto perdidos em suas responsabilidades, e isso não é uma falha, mas um mundo bem sincero visto pelos olhos de Maisie.

    Pelos olhos de Maisie: um barco emocional

    Enquanto os pais da menina se afastam cada vez mais dela, com promessas e anúncios banais de que nunca mais a verão, oscilando bruscamente seus humores como que para testar os sentimentos da filha, esta encontra na governanta e no padrasto seus maiores amigos. É com eles que a menina sonha formar uma nova família, mas na medida em que todos são confusos com seus planos malfeitos e traições, Maisie também o é: ela é como um barco emocional equilibrado pelo espaço onde o lastro é mais seguro, só que este lastro sempre muda de posição, ao menos no inquieto coração da menina, que como seus pais, possíveis casos de personalidades limítrofes numa análise mais profunda, sempre muda de opinião e encontra nas indecisões sua maior insegurança: com quem vou ficar?

    No livro “Pelos olhos de Maisie”, também James intercala ironia, frieza e emoção nas atitudes de seus personagens, sobretudo no triângulo Farange, como quando Maisie, coberta de lágrimas, pede ao novo pretendente da mãe que a ame para sempre, ou quando Beale diz à filha que para sua mãe ela é uma empregada despedida por ter se portado mal, ou como quando Ida diz à filha que seu pai a quer morta. Todo o romance é oscilação, é mudança e dúvida, e quem mais sofre, ainda que não de forma exteriorizada, é Maisie. A personagem sofre em silêncio, e como um frágil barco de papel perdido no mar, é levada para todos os lados por forças maiores e descontroladas, sobretudo egoístas.

    “Ah, o leitor jamais acreditará em mim se eu lhe contar todas as coisas que Maisie viu, todos os segredos que descobriu!”, registrou Henry James. E é verdade. Por mais que tenhamos um detalhado e dramático vislumbre da infância de Maisie Farange através de seus olhos, é impossível descobrir o que ficou escondido, que outras traições humanas chegaram ao seu conturbado conhecimento. Tudo o que sabemos, enfim, é que Maisie sabia o que estava acontecendo, e que parte de sua saudável ingenuidade, mesmo fragmentada, não chegou a ser destruída. Assim como sua alegria de viver.

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