O que me chamou atenção para o livro O Outro Pé da Sereia, do moçambicano Mia Couto, fora sua escrita onírica e poética, que já conheci em outro livro, e percebi muito mais marcante neste livro. Realmente, o livro ficou repleto de “tags”, e escolher algumas para compartilhar na resenha foi de uma perturbável indecisão. E não só apenas de frases feitas a beleza da escrita de Mia Couto se constitui, os nomes dos personagens também fazem parte dessa construção. Um deles é chamado Zero Madzero, um personagem que é caracterizado como ‘quem se anula’. O nome do vilarejo onde Zero vive com a esposa Mwadia chama-se Antigamente (por motivos que o leitor descobrirá e interpretará à sua própria maneira).

    O livro é dividido em dezanove (conforme o português moçambicano que a editora deixou intacto) capítulos; uma outra divisão feita no livro é com respeito ao tempo: há uma história acontecendo no século XVI e outra no início do século XXI (especificamente em 2002), onde encontram-se Mwadia e seu esposo. Há mais capítulos concedidos à história de Mwadia, que também possui mais personagens. Na introdução de cada capítulo há poemas ou ditos populares dos próprios personagens do livro antes de se retomar a história, alguns chegam até a dizer o que acontecerá no fim do capítulo, ou os pressupostos deste.

    O enredo da obra

    O enredo de O outro pé da sereia gira ao redor de uma estrela que caiu do céu e de uma imagem santa que possui apenas um pé (já que o outro lhe foi cortado). Ao descobrir a estrela que cai do céu e enterrá-la na margem de um rio, Zero descobre a imagem junto de um baú que estava escondido ao lado de uma ossada humana. A escultura da santa foi feita no século XVI e está num barco (ainda com os dois pés) que encerra os personagens que fazem parte da história mais antiga. Já no nosso milênio a premissa que desenvolverá a outra parte da história é de Mwadia que volta à sua cidade natal, Vila Longe, para deixar a santa num lugar apropriado, como uma igreja. Fora esses acontecimentos, não existem outros com maiores mudanças, o que se passa depois são diálogos e alegorias (que serão melhor explicadas no próximo parágrafo) que tem por objetivo formar as 330 páginas do livro.

    O maior destaque que se percebe em O outro pé da sereia não é seu lirismo, mas seu engajamento social. O leitor se choca com o contraste da poesia da escrita e os temas abordados (não que a poesia também não tenha esse poder), ambos se entrelaçam e mesmo a beleza mais pura de O outro pé da sereia se torna obscura. Os temas mais discorridos são a religião e o preconceito com os negros, e como estes lidam com o tema no seu dia a dia. Há uma passagem que se diz que em Moçambique, dizer “negro” é ofensivo, lá se usa o termo “preto”. A imposição do cristianismo a várias culturas feita pelos portugueses possui uma forte presença, assim como a hipocrisia da religião. A crítica feita pelo livro possui argumentos tão bem trabalhados que deixa toda a beleza descrita no início do post nas sombras.

    Frases de O Outro Pé da Sereia:

    “– Foi aqui, neste chão, que nasceram as minhas filhas.
    — Não nasceram no hospital?, admirou-se Rosie.
    — Nunca. Como é que alguém pode ser feliz se nasce no lugar dos doentes?”

    “Só temos como nossos os filhos que são infelizes. Os outros, os que gozam de felicidade, acabam se afastando, em suave dança com a Vida.”

    “Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma. O único de que, naquele instante, Constança era capaz.
    Depois da Independência, Arcanjo Mistura tentou voltar à cidade grande. Levou com ele uma agenda de moradas e telefones. Começou visitando a casa do primeiro companheiro, o primeiro da lista. Tinha morrido. O segundo, igualmente morto. E o terceiro, idem. E Arcanjo ia riscando na sua agenda de bolso, um por um, os nomes dos antigos companheiros. Aos poucos, a agenda exibia mais riscos que nomes. Descobriu, então, que era ele mesmo que se estava apagando a cada risco. No final, a sua memória não era mais do que uma agenda inútil. Desistiu da cidade e regressou a Vila Longe. E fez-se barbeiro. Não tinham sido apenas os amigos que morreram. Falecera um tempo em que ele podia fazer amigos.”

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