Papéis avulsos: uma compilação de contos que precisam estar juntos, mesmo se tratando, cada conto, de personagens e enredos diferentes.

    Ler Machado de Assis é uma decisão, como pular de um alto penhasco para um mar de metáfora, ironia e crítica social. E quando se está na água, as ondas se transformam em novas interpretações e analogias. Porque assim são os grandes livros, dos grandes escritores, o tempo passa e tudo permanece absurdamente atual e profundo.

    Papéis Avulsos, lançado em 1882, é uma compilação de contos que o próprio Machado avisa que, apesar da palavra “avulsos”, precisam estar juntos, é uma leitura grandiosa, pois, assim como somente os grandes escritores fazem, a cada página o leitor se sente maravilhado e quase não acredita que a próxima é melhor ainda. E mesmo se tratando cada conto de personagens e enredos diferentes, é possível perceber com clareza o que Machado quis dizer quando avisou que os contos precisam estar juntos, pois todos eles levam o leitor a comparar os extremos da vida: loucura e sanidade, vida social e vida pessoal; corpo e alma.

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    O primeiro conto é o famoso O Alienista. É a história de um homem que decide construir um manicômio para cuidar de pessoas e, principalmente, tentar entender a loucura humana. Ele acredita que há uma pequena diferença entre a maluquice e a sanidade que, de acordo com características humanas que ele julga fundamentais, se torna necessário um rigoroso tratamento. O problema se dá quando há mais pessoas no manicômio do que fora dele. Revolta, revolução, brigas, mudanças de opinião, tudo isso cria um cenário caótico, com um final desconcertante.

    O conto seguinte chama-se Teoria do Medalhão. E a porção servida é com a mais perfeita e profunda ironia. A situação é irônica, cada frase do conto, isoladamente, se torna também uma grande ironia e o conto, todo junto – no começo, meio e fim – é outra ironia absurdamente boa. Um exemplo: quando o pai diz para o filho que ele, para ser alguém na vida, precisa conviver em tamanha harmonia que é necessário não ter ideias próprias, que ele precisa apena decorar alguns jargões escritos por grandes nomes da filosofia e literatura e utilizá-las no convívio social.

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    Outro conto incrivelmente bom é “A Chinela Turca”, uma deliciosa brincadeira sobre leitor e obra. Sobre os limites que fazem uma obra boa e ou um leitor bom. Se nos contos anteriores, o foco era tocar nas feridas da sociedade, este possui um pouco mais de leveza, para divertir o leitor.

    Quando cheguei no conto “D. Benedita”, a sensação era de satisfação, pois o leitor de Machado de Assis pode afirmar que conhece os pontos altos que a literatura brasileira pode atingir. Neste conto, a personagem, uma mulher madura e abandonada pelo marido, está em um jantar, em sua própria casa, mas os seus pensamentos não estão naquela situação. Ela divaga sobre o seu passado e o que virá no futuro, assim como fez Mrs. Dalloway (Virginia Woolf), em um dia comum. A diferença é que D. Benedita não possui um pensamento articulado e profundo, mas sim um vazio preenchido com desejos inconstantes. “Tudo nela cingia-se àquele presente que cai depressa no olvido quando sobrevêm outras sensações, erráticas por natureza, trazendo o gosto de um novo e também efêmero presente.”

    E de repente você está lendo um conto sobre pessoas que estão doentes, uma doença bizarra que faz o nariz ficar muito grande e então é preciso arrancá-lo. “O Segredo do Bonzo” mostra para o leitor o quanto pode ser sutil, mas também muito claro o poder de convencimento sobre coisas que podem não existir, ou existir, de fato, mas que, na fala persuasiva convence que o certo é errado, o bonito é feio e o bom é mau.

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    O Espelho é o nome do conto que vai deixar o leitor, no mínimo, mais embasbacado ainda com a genialidade de Machado de Assis. Ele fortifica o pensamento sobre como é a conexão desses contos aparentemente distintos por meio de uma ideia simples, mas que coloca em evidência muitas fraquezas do ser humano. Se eu tenho duas almas, uma de fora para dentro e outra de dentro para fora. Essa primeira é totalmente influenciável pelo modo como as pessoas me veem, o equilíbrio está em ser possível uma vida sem depender exclusivamente desta alma, caso contrário, a alma externa irá destruir a interna. Em palavras machadianas, é assim:

    “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”

    Há outros contos presentes no livro. Nesta resenha eu quis destacar os que mais me chamaram a atenção, no entanto é preciso deixar claro que os outros são tão bons quanto esses comentados aqui, porém, cada leitor leva para si o que mais surpreende e o que mais revela do autor e, principalmente, de si mesmo. Eu como iniciante no mundo de Machado de Assis (li há muito tempo Dom Casmurro), me sinto uma melhor leitora agora, como se eu tivesse subido mais um degrau, de uma escada que se chama ser leitor e conseguir aproveitar tudo o que os grandes escritores têm a nos oferecer. Feliz estou.

    Veja o vídeo sobre Papéis Avulsos no canal Livro&Café:

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