Torto Arado é um romance de Itamar Vieira Junior. Vencedor dos prêmios Leya, Oceanos e Jabuti, a obra é uma experiência única sobre a vida e a realidade de um povo brasileiro quase esquecido.
Torto Arado é um daqueles livros em que é fácil dizer ser uma leitura obrigatória para conhecer o Brasil. Tudo porque Itamar Vieira Junior nos leva para um lugar muito específico de nosso país para adentrarmos no universo dos trabalhadores rurais e suas dificuldades que atravessam gerações e gerações.
A obra, dividia em três partes, vai nos apresentar as irmãs Bibiana e Belonísia, desde a infância à vida adulta e o entrelace de suas vidas com a comunidade rural em que vivem. E os capítulos, tão bem constituídos, trazem para o leitor toda a força de uma boa história: a realidade sendo esculpida diante dos olhos.
Torto Arado (Itamar Vieira Junior)
Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas ― a ponto de uma precisar ser a voz da outra. Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, o romance conta uma história de vida e morte, de combate e redenção.
A trajetória de Bibiana
A primeira personagem a nos apresentar a história é Bibiana. E seu relato é carregado pelo acidente que ocorreu com ela e a irmã na infância. Vamos conhecer também um pouco do universo místico que envolve a família e toda a comunidade por meio da figura do pai e seus poderes como curandeiro. A princípio, são os acontecimentos comuns de uma infância do sertão da Bahia que se intercala com a realidade dura da seca nordestina.
Vamos observar que a família de Bibiana vive em uma situação de escravidão, pois não possuem direito à terra em que plantam e cuidam. E boa parte do que conseguem colher para se alimentarem é preciso ainda repassar para os seus “senhores”. Assim, temos a construção de um cenário que a todo momento nos mostra a discrepância social. E eles, tão imersos em suas mazelas, mal sabem dos direitos que possuem em relação ao lugar em que vivem.
A questão da forma como essa família sobrevive fica evidente pela força religiosa e a conexão que possuem com a natureza. Praticantes do Jarê (uma manifestação religiosa de matriz africana), Bibiana e sua família representam também a força de suas ancestralidades sobrevivendo ao tempo.
E quando Bibiana cresce e começa a ter pequenos lampejos sobre a crueldade a qual sua vida e de sua família está inserida, parte para longe de sua comunidade atrás de estudos.
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A vida interior de Belonísia
Ao chegarmos na segunda parte do livro, iremos revisitar alguns acontecimentos já narrados por Bibiana, mas com um ponto de vista diferente, pois sua irmã Belonísia, a mais prejudicada pelo acidente na infância, possui uma outra forma de enxergar o próprio mundo em que vive e amplia nossa visão sobre o passado da família, suas raízes e o que difere e complementa uma irmã à outra.
Pode ocorrer um leve estranhamento nessa mudança de narração, pois Bibiana e sua forma de contar sobre o seu mundo é cativante. No entanto, Belonísia entrega uma força interna tão pulsante que rapidamente o leitor mergulha em sua forma de ver e viver o sertão. Ela amplia todo o clima da obra e deixa o enredo mais potente, como se preenchesse lacunas sobre a própria família e suas individualidades.
Belonísia tem suas particularidades. Belonísia traça o seu próprio caminho e enfrenta muitas coisas para sobreviver em seu mundo. Enquanto Bibiana vai em busca dos estudos formais, Belonísia, se dedica à plantação, ao cuidado do lar, à aprender com o seu pai a arar a terra. E isso tudo traz pra ela, um olhar mais místico perante sua realidade, uma conexão maior com seu povo, a terra e sua ancestralidade. É por meio dela que vamos compreender mais sobre o universo de sua família, a trajetória de sua avó e de seu pai para lidar com os chamados “encantados”, os seres espirituais que aparecem e ajudam a comunidade a partir das práticas do Jarê.
A força do enredo e das irmãs
As irmãs que protagonizam a história possuem semelhanças e diferenças. Cada uma traça o seu caminho e ao mesmo tempo é como se elas fossem uma só. As duas possuem um desejo de pertencer, de cuidar do lugar em que vivem e de saberem mais. Aos poucos, o reconhecimento da miséria em que vivem vai inflando a problemática da obra, e se torna um prelúdio das violências que elas e toda a comunidade irão sofrer. Então, podemos dizer que Torto Arado é um livro que fala sobre conquistas pessoais e também sobre direitos. É sobre a luta por dignidade do trabalhador do campo, sobre relações familiares, sociais e de poder. Não somente as irmãs, mas todos os outros personagens inseridos na vida do campo, lutam para se tornarem alguma coisa.
Torto Arado é sobre o tempo, a terra, as leis e os direitos
Ao ler Torto Arado, o leitor irá se perguntar sobre qual época de nossa história a obra pertence. Em alguns momentos, a sensação é de estar diante de uma obra que representa o Brasil colonial. Em outros, pequenos elementos são adicionados e identificamos que a história de Água Negra é sobre um período mais atual do Brasil. E depois, entendemos que Torto Arado é também sobre um povo que permanece enraizado de tal forma que a passagem dos dias não gera o mesmo efeito. É um povo em que as leis e os direitos civis não chegaram. É um povo que está vivendo aqui e agora como se ainda estivéssemos lá atrás. E tudo porque o Brasil foi feito por homens que escolheram quem tinha direito às terras, sem mesmo saber que essas terras já pertenciam a outras pessoas: os quilombolas, os indígenas, os ribeirinhas e tantas outras comunidade que ainda resistem ao tempo e à violência por quererem permanecer em suas terras – que são suas muito mais que por direito.
“Para se reconhecer é preciso conhecer”
Itamar Vieira Junior, em uma entrevista para o Brasil de Fato, comenta sobre a importância de se reconhecer perante a realidade em que se vive. Assim, em Torto Arado ele tece a história de forma a mostrar, aos poucos, como essas personagens vão compreendendo sobre suas próprias existências. É um observação bonita e necessária para entender a construção e os motivos que levam as comunidades a lutarem até hoje por sobrevivência e dignidade. De uma condição de existência pautada apenas na serventia, é quando acontece esse movimento de se reconhecer, que é possível lutar. Em contra partida é nesse meio que ocorre a violência, o massacre e o apagamento. Na construção do enredo de Torto Arado, o leitor irá vivenciar a forma como cada personagem traça o seu caminho para se reconhecer e, como não poderia deixar de ser, a violência vem junto.
É comum dizermos que a boa literatura é feita quando o autor consegue mostrar e não contar a história e nisso Itamar Vieira Junior dominou muito bem ao longo de toda a obra. Um acontecimento segue o outro e não o diminui, não o anula e sim vai construindo mais tensão e compreensão. E não é uma tensão por um único motivo, mas uma tensão por vidas que se entrelaçam e possuem algo em comum: a miséria, o silêncio e a sobrevivência.
A terceira parte do livro: as forças ocultas
Na terceira parte do livro, vamos conhecer uma outra narração, a partir da figura de um “encantado”, ou seja, dos próximos “deuses” que regem a vida das personagens da obra. É como um presente em poder adentrar o universo tão rico dos encantados e conhecer mais um ponto de vista sobre a obra. E claro, esse ser encantado – esquecido pela própria comunidade – vai se cruzar com a vida das protagonistas destilando toda a sua força perante a maldade dos homens e a briga por terras.
Se Bibiana e Belonísia buscavam uma força para conseguir enfrentar toda a tragédia de suas vidas, elas não poderiam imaginar que na força do oculto encontrariam uma forma de revidar a tudo e todos. Tampouco o leitor. Dessa forma, Torto Arado se explica porque nada nem ninguém consegue imaginar de onde vem o ponto de virada quando a vida se mostra tão dura e árida.
Ler Torto Arado por tudo e tanto é um compromisso para que a luta iniciada lá no passado do Brasil escravocrata não termine, porque ainda não terminou em muitos cantos desses Brasis.