“Bom-Crioulo” é uma obra do escritor brasileiro Adolfo Caminha, publicada originalmente em 1895. Conhecida como o primeiro livro com temática homoafetiva da história da literatura ocidental.

    Adolfo Caminha, nasceu em 1867 e faleceu em 1897. Além de escritor, ele também foi jornalista e diplomata, contribuindo para o panorama cultural e político do Brasil do final do século XIX. O seu livro “Bom-Crioulo” faz parte do Naturalismo, movimento literário que que surgiu na segunda metade do século XIX, com a principal característica de retratar de forma objetiva e precisa a realidade e o comportamento humano, com ênfase nos aspectos biológicos e sociais.

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    A obra causou um escândalo entre os críticos literários da época, pois teve a coragem de abordar temas considerados proibidos no final do século XIX: as relações sexuais entre pessoas de diferentes etnias, a homossexualidade e o erotismo.

    Assim, a obra homoerótica apresenta ao leitor Amaro, um homem escravizado fugido, que busca liberdade em alto-mar, alistando-se na Marinha. No entanto, mesmo nesse novo ambiente, o protagonista continua a ser vítima de violência. Em um período em que a representatividade era escassa e o preconceito contra a diversidade sexual era ainda mais opressor, Amaro encontra um refúgio emocional ao conhecer Aleixo, um jovem e dedicado rapaz, com quem compartilha uma forte paixão.

    Na pensão de D. Carolina, uma prostituta decadente que acolhe os dois amantes, eles encontram um espaço seguro para viver. A escrita intensa de Adolfo Caminha e sua abordagem proporcionam uma perspectiva única sobre a sexualidade e as complexidades emocionais dos personagens.

    O narrador da obra: um representante da época

    Narrada em terceira pessoa, a história de Amaro e Aleixo é permeada pelo olhar da época, caracterizado por preconceitos e falta de compreensão em relação à diversidade da sexualidade humana. Como resultado, a leitura do livro tende a refletir percepções ásperas e discriminatórias em relação à homossexualidade.

    Confira trechos da obra “Bom-crioulo”:

    “Marcas de lona suspensas em varais de ferro, umas sobre as outras, encardidas com panos de cozinha, oscilavam à luz moribunda e macilenta das lanternas. Imagine-se o porão do navio mercante carregado de miséria. No intervalo das peças, na meia escuridão dos recôncavos moviam-se corpos seminus, indistintos. Respirava-se um odor nauseabundo de cárcere, um cheiro acre de suor humano diluído em urina e alcatrão. Negros, de boca aberta, roncavam profundamente, contorcendo-se na inconsciência do sono.”

    “Bom-Crioulo estava de folga. Seu espírito não sossegara toda a tarde, ruminando estratagemas com que desse batalha definitiva ao grumete, realizando, por fim, o seu forte desejo de macho torturado pela carnalidade grega. Por vezes tinha querido sondar o ânimo do grumete, procurando convencê-lo, estimulando-lhe o organismo; mas o pequeno fazia-se esquerdo, repelindo brandamente, com jeitos de namorada, certos carinhos do negro. – Deixe disso, Bom-Crioulo, porte-se sério! (…) Às nove horas, quando Bom-Crioulo viu Aleixo descer, agarrou a maca e precipitou-se no encalço do pequeno. Foi justamente quando o viram passar com a trouxa debaixo do braço, esgueirando-se felinamente.”

    Bom-Crioulo não pensou em dormir, cheio, como estava, de ódio e desespero. Ecoavam-lhe ainda no ouvido, como um dobre fúnebre, aquelas palavras de uma veracidade brutal, e de uma rudez pungente: “Dizem até que está amigado!” par Amigado, o Aleixo! Amigado, ele que era todo seu, que lhe pertencia como o seu próprio coração: ele, que nunca lhe falara em mulheres, que dantes era tão ingênuo, tão dedicado, tão bom!… Amigar-se, viver com uma mulher, sentir o contato de outro corpo que não o seu, deixar-se beijar, morder, nas ânsias do gozo, por outra pessoa que não ele, Bom-Crioulo!… par Agora é que tinha um desejo enorme, uma sofreguidão louca de vê-lo, rendido, a seus pés, como um animalzinho; agora é que lhe renasciam ímpetos vorazes de novilho solto, incongruências de macho em cio, nostalgias de libertino fogoso… As palavras de Herculano (aquela história do grumete com uma rapariga) tinham-lhe despertado o sangue, fora como uma espécie de urtiga brava arranhando-lhe a pele, excitando-o, enfurecendo-o de desejo. Agora sim, fazia questão! E não era somente questão de possuir o grumete, de gozá-lo como outrora, lá cima, no quartinho da Rua da Misericórdia: – era questão de gozá-lo, maltratando-o, vendo-o sofrer, ouvindo-o gemer… Não, não era somente o gozo comum, a sensação ordinária, o que ele queria depois das palavras de Herculano: era o prazer brutal, doloroso, fora de todas as leis, de todas as normas… E havia de tê-lo, custasse o que custasse! par Decididamente ia realizar o seu plano de fuga essa noite, ia desertar pelo mundo à procura de Aleixo. par Inquieto, sobre excitado, nervoso, pôs-se a meditar. O grumete aparecia-lhe com uma feição nova, transfigurado pelos excessos do amor, degenerado, sem aquele arzinho bisonho que todos lhe admiravam, o rosto áspero, crivado de espinhas, magro, sem cor, sem sangue nos lábios… Aleixo devia de estar muito acabado; via-o nos braços da amante, da tal rapariga – ele novo, ela mocinha, na flor dos vinte anos -, via-o rolar em espasmos luxuriosos, grudado à mulher, sobre uma cama fresca e alva – rolar e cair extenuado, crucificado, morto de fraqueza… Depois a rapariga debruçava-se sobre ele, juntava boca à boca num grande beijo de reconhecimento. E no dia seguinte, na noite seguinte, a mesma cousa.

    “Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com Aleixo”

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