Conceição Lima é uma renomada poetisa nascida em São Tomé e Príncipe, um arquipélago africano no Golfo da Guiné. Sua jornada literária começou a florescer enquanto trabalhava como professora, uma profissão que ela exerceu com grande dedicação. O estilo de escrita de Conceição Lima é profundamente influenciado pela tradição oral africana e pelo realismo mágico, uma característica distintiva que embeleza suas palavras com imagens vívidas e uma sensibilidade única. Ela é reconhecida por sua habilidade em tecer narrativas poéticas que exploram a identidade, a memória, o amor e a natureza, enquanto também faz reflexões críticas sobre questões sociais e políticas que afetam seu país e o continente africano como um todo.

    As poesias de Conceição Lima desempenham um papel fundamental na expansão do conhecimento sobre a literatura africana. Sua obra oferece uma voz cativante e autêntica que revela a rica diversidade da experiência africana. Ela aborda temas profundos e universais, como a diáspora africana, a exploração colonial, a busca por identidade cultural e a conexão com a terra natal. Sua poesia também lança luz sobre as lutas e triunfos do povo africano ao longo da história, contribuindo para a compreensão mais ampla das complexidades da vida no continente. Além disso, Conceição Lima é uma das vozes literárias mais importantes de São Tomé e Príncipe, ajudando a preservar e promover a cultura rica e multifacetada do país através de sua escrita.

    Abaixo você encontra 8 poesias de Conceição Lima retiradas do livro “O útero da casa”

    conceição lima
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    1. Mátria

    Quero-me desperta
    se ao útero da casa retorno
    para tactear a diurna penumbra
    das paredes
    na pele dos dedos rever a maciez
    dos dias subterrâneos
    os momentos idos

    Creio nesta amplidão
    de praia talvez ou de deserto
    creio na insônia que verga
    este teatro de sombras

    E se me interrogo
    é para te explicar
    riacho de dor cascata de fúria
    pois a chuva demora e o obô entristece
    ao meio-dia

    Não lastimo a morte dos imbondeiros
    a Praça viúva de chilreios e risonhos dedos

    Um degrau de basalto emerge do mar
    e nas danças das trepadeiras reabito
    o teu corpo
    templo mátrio
    meu castelo melancólico

    de tábuas rijas e de prumos

    2. Inegável

    Por dote recebi-te à nascença
    e conheço em minha voz a tua fala.
    No teu âmago, como a semente na fruta
    o verso no poema, existo.

    Casa marinha, fonte não eleita
    a ti pertenço e chamo-te minha
    como à mãe que não escolhi
    e contudo amo.

    3. A casa

    Aqui projectei a minha casa:
    alta, perpétua, de pedra e claridade.
    O bsalto negro, poros
    viria da Mesquita.
    Do Riboque o barro vermelho
    da cor dos ibiscos
    para o telhado.

    Enorme era a janela e de vidro
    que a sala exigia um certo ar de praça.
    O quintal era plano, redondo
    sem tranca nos caminhos.

    Sobre os escombros da cidade morta
    projectei a minha casa
    recortada contra o mar.
    Aqui.
    Sonho ainda o pilar –
    uma rectidão de torre, de altar.
    Ouço murmúrios de barcos
    na varanda azul.
    E reinvento em cada rosto fio
    a fio

    as linhas inacabadas do projecto

    4. Os heróis

    Na raiz da praça
    sob o mastro
    ossos visíveis, severos, palpitam.
    Pássaros em pânico derrubam trombetas
    recuam em silêncio as estátuas
    para paisagens longínquas.
    Os mortos que morreram sem perguntas
    regressam devagar de olhos abertos
    indagando por suas asas crucificadas

    5. Residência

    Regressarás pela ladeira velha
    sem aviso.
    Será como ontem, ao entardecer:
    remoto, repentino, o assobio.
    E no caminho, um soluço de festa
    derramado.

    A luz será húmida
    a chuva íntima
    sobre a marca dos teus pés.
    Dedo a dedo, folha a folha
    tocarás os cheiros
    os sortilégios do quintal –
    o limoeiro anão da avó
    o decrépito izaquenteiro
    o ocá assombradíssimo
    o kimi torto
    e à entrada, no barro gravado,
    o fantasma do bode branco.
    O degrau há-de ranger ao primeiro passo.
    Subirás devagar, concreto
    sem pisar a tábua solta no soalho.
    A porta estará aberta, a tocha acesa.

    6. A herança

    Sei que buscas ainda
    o secreto fulgor dos dias
    anunciados.
    Nada do que te recusam
    devora em ti
    a memória dos passos calcinados.
    É tua casa este exílio
    este assombro esta ira.
    Tuas as horas dissipadas
    o hostil presságio
    a herança saqueada.
    Quase nada.
    Mas quando direito e lúgubre
    marchas ao longo da Baía
    um clamor antigo
    um rumor de promessa
    atormenta a Cidade.
    A mesma praia te aguarda
    com seu ventre de fruta e de carícia
    seu silêncio de espanto e de carência.
    Começarás de novo, insone
    com mãos de húmus e basalto
    como quem reescreve uma longa profecia 

    7. Afroinsularidade

    Deixaram nas ilhas um legado
    de híbridas palavras e tétricas plantações

    engenhos enferrujados proas sem alento
    nomes sonoros aristocráticos
    e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

    Aqui aportaram vindos do Norte
    por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
    navegadores e piratas
    negreiros ladrões contrabandistas
    simples homens
    rebeldes proscritos também
    e infantes judeus
    tão tenros que feneceram
    como espigas queimadas

    Nas naus trouxeram
    bússolas quinquilharias sementes
    plantas experimentais amarguras atrozes
    um padrão de pedra pálido como o trigo
    e outras cargas sem sonhos nem raízes
    porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
    todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

    E nas roças ficaram pegadas vivas
    como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
    escravo morto.

    E nas ilhas ficaram
    incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
    cento e tal igrejas e capelas
    para mil quilómetros quadrados
    e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
    E ficou a cadência palaciana da ússua
    o aroma do alho e do zêtê d’óchi
    no tempi e na ubaga téla
    e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
    e o perfume do alecrim
    e do mlajincon nos quintais dos luchans

    E aos relógios insulares se fundiram
    os espectros — ferramentas do império
    numa estrutura de ambíguas claridades
    e seculares condimentos
    santos padroeiros e fortalezas derrubadas
    vinhos baratos e auroras partilhadas

    Às vezes penso em suas lívidas ossadas
    seus cabelos podres na orla do mar
    Aqui, neste fragmento de África
    onde, virado para o Sul,
    um verbo amanhece alto
    como uma dolorosa bandeira.

    8. Antes do poema

    I
    Quando o luar caiu
    e tingiu de magia os verdes da ilha
    cheguei, mas tu já não eras.
    Cheguei quando as sombras revelavam
    os murmúrios do teu corpo
    e não eras.
    Cheguei para despojar de limites
    o teu nome.
    Não eras.
    As nuvens estão densas de ti
    sustentam a tua ausência
    recusam o ocaso do teu corpo
    mas não és.
    Pedra a pedra encho a noite
    do teu rosto sem medida
    para te construir convoco os dias
    pedra a pedra
    no tem que te consome
    As pedras crescem como vagas
    no silêncio do teu corpo
    Jorram e rolam
    como flores violentas
    no silêncio do teu corpo
    E sangram. Como pássaros exaustos.
    A noite e o vento se entrelaçam
    no vazio que te espera.

    II
    Súbito chegaste
    quando falsos deuses subornavam
    o tempo
    chegaste para despedir
    a insónia e o frio
    chegaste sem aviso
    quando a estrada se abria
    como um rio
    chegaste para resgatar
    sem demora o princípio.

    Grave o silêncio rodeia o teu corpo
    hostil o silêncio agarra teu corpo.
    Mas já tomaste horas e abismos
    já a espessura do obô
    resplandece em tua testa.
    E não bastam pombas em demência
    no teu rosto
    não bastam consciências soluçantes
    em teu rasto
    não basta o delírio das lágrimas libertas.

    Eu cantarei em pranto
    teu regresso sem idade
    teu retorno do exílio na saudade
    cantarei sobre a terra
    teu destino rebelde.

    Para te saudar no mar e no palmar
    na manhã do canto sem represas
    cantarei a praia lisa e o pomar

    Direi teu nome e tu serás.


    Imagem de destaque: Póvoa de Varzim

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