Resumo: Visamos apresentar uma interpretação sobre a perspectiva de Michel Foucault sobre o neoliberalismo, e, em específico, destrinchar certos aspectos de seu curso “O Nascimento da Biopolítica” (2008), como a sua metodologia, sua instrumentalização teórica e seus fundamentos conceituais, para, enfim, propor reflexões e práticas a partir da compreensão foucaultiana do neoliberalismo. De início, centralizamos nossa investigação na metodologia de Michel Foucault e, em nosso desenvolvimento, realizamos uma série de relacionamentos entre conceitos e interpretações do filósofo francês para desenhar uma configuração do neoliberalismo com ênfase na constituição do indivíduo neoliberal e nos aspectos estruturantes de uma sociedade neoliberal; por fim, concluímos que a resistência, para Foucault, pode ser interpretada a partir de paralelos com a sua metodologia, isto é, ambos compartilham o princípio de privilegiar práticas concretas.

Introdução: A metodologia

Um aspecto essencial à Michel Foucault é um princípio metodológico em que transpassa a constante crítica aos universais abstratos, supondo a universalidade enquanto singularidade contingencial que é produzida historicamente (NETO, 2015, p. 415). Sua relação com a história, em uma frase, é um meio para produzir a eventualização da nossa verdade.

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Nessa sequência, Michel Foucault pensa historicamente no neoliberalismo por meio de uma metodologia que é transpassada pela questão da verdade e por rupturas; de maneira concisa, salienta que sua metodologia deve, particularmente, acatar às rupturas, e não às universalizações abstratas. Tais pressupostos são manifestos em “O Nascimento da Biopolítica”, curso de 1978, quando, por exemplo, não trata dos universais na teoria política (soberanos, Estado, sociedade civil), e sim de suas práticas concretas. Ferreira Neto supõe que sua principal decisão teórica e metodológica era a suposição de que os universais não existem (NETO, 2015, p. 414). Há certa lógica, quando se percebe a incidência dessa decisão em outras obras, cursos de anos retrasados, como em “Segurança, território e população”, curso de 1977, a qual o autor assume como proposições para análise dos mecanismos de biopoder:

1) não se busca uma teoria geral, mas simplesmente saber por onde, como, por quem, quais procedimentos e com que efeitos; 2) as relações de poder não são fundadas em si mesmas, mas imanentes ao conjunto das relações sociais; 3) sua análise pode se abrir para uma análise global da sociedade; 4) não há discurso teórico ou imperativo, mas indicadores táticos; e, 5) finalmente, se há uma relação desgastada entre luta e verdade, resta um imperativo: nunca fazer política.

(FERREIRA NETO, 2015, p. 413).

Ou ainda, em “Em defesa da sociedade”, curso de 1976,  suas precauções de método para:

apreender o poder “nas suas formas e instituições mais regionais e locais”; analisá-lo em “suas práticas efetivas e reais”; observar seu funcionamento reticular e não homogêneo; e realizar uma análise ascendente e indutiva, não dedutiva do poder.

(FERREIRA NETO, 2015, p. 413).

O autor faz uma cruzada contra uma abordagem de metafísica universalista, e essa cruzada é plano de fundo para seu exercício genealógico que propõe inquisição sobre as manifestações do discurso em práticas político-sociais. Não obstante, esse exercício genealógico tem por enfoque, ao que interpretamos, desnaturalizar do sujeito os mecanismos de constituição do próprio sujeito, ainda mais, incitar uma crítica às formas de poder que incidem nas relações entre sujeitos.

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Em síntese, seu movimento parte das pequenas relações para se entender as grandes, encadeando uma cadeia lógica, nesse caso, uma cadeia de poder e uma teia administrativa da vida dos indivíduos. Saindo da margem para o centro das relações, Foucault desconfia que políticas públicas são uma forma de política administrativa da vida dos indivíduos que estão inseridos nela, uma forma de ter poder e controlar a população (LEMKE, 2001, p. 34).

Ou seja, embora o autor adote uma metodologia de maior capilaridade, não descarta a incidência de um aspecto político na condução das condutas, levando a cabo uma genealogia da governamentalidade como crítica das práticas de governo que cerceiam o sujeito. A distinção maior, segundo exposto, parece ser não partir centralmente da teoria política, mas do sujeito, e, a partir de seus relacionamentos, conceber a formação e influência de um determinado governo. Helrison Silva Costa interpreta que o eixo de suas pesquisas, no fim da década de 1970, desloca-se de uma micropolítica das relações de poder normalizadas para uma análise das técnicas em que os sujeitos governam uns aos outros, buscando apreender as relações de poder enquanto práticas de governo, definido enquanto modo de condução de si e de outrem (COSTA, 2019, p. 177).

Nesse caso, a análise de Foucault sobre a governamentalidade anseia tratar da condução dos indivíduos não somente na correspondência entre governo e Estado, mas em uma multiplicidade de forças, uma série de condições, que emanam uma configuração política específica. A oposição, em sua metodologia, é feita contra compreensões que articulam uma suposta crescente estatização da sociedade, na medida em que perscruta formas de governo que se desdobram em um Estado governamentalizado. Ao que tudo indica, Foucault não parte de uma noção onde a sociedade é progressivamente dominada, de cima para baixo, assim sendo, o autor investiga o modo pelo qual a sociedade é governada em um relacionamento com uma série de práticas de poder.

Em suma, o autor parece fazer oposição à tradicional maneira de conceber um Estado enquanto universal político, em dois níveis. Em primeiro lugar, o Estado para Foucault se constitui como efeito de um arranjo de práticas de governo para a condução dos sujeitos, em uma percepção que prioriza a atuação dos sujeitos no processo de formação política; em segundo lugar, configurado o objeto de sua análise em uma série de técnicas de governo, há um caráter de instabilidade, próprio da governamentalidade, que ocasiona uma mobilidade categórica distante dos absolutos universais (COSTA, 2019, p. 178).

Isso posto, Foucault designa o fato de que as práticas de condução de conduta são capazes de governar o sujeito enquanto indivíduos e enquanto pertencentes a uma população. Nesse ponto, um aparato conceitual voltado para o sujeito, ou melhor, para a sujeição, começa a explorar relações de poder sob auspícios da governamentalização, refletindo a relação do indivíduo, por definição singular, com uma política moderna que atua em processos de uniformização (COSTA, 2019,  p. 179-182). A crítica foucaultiana, por extensão, está no que se desenvolve, do início da modernidade em diante, como comportamento ideal, uma maneira de agir e a relacionar-se com o mundo que se fixou como hegemônica, em um ethos moderno (COSTA, 2019,  p. 178-182).

Portanto, suas pesquisas, no final dos anos 70, estão vinculadas a uma tendência de oposição à investida dessa forma de poder, tendo em vista a emergência de atitudes críticas que vão contra esse progresso moderno, procurando escape destas artes de governar, demonstrando, por meio de suas investigações, a possibilidade da arte de não ser governado, ou, pelo menos, não dessa forma. Conforme exposto, em uma camada que subjaz à sua pesquisa, o autor anseia por formas de resistência frente às práticas de governo, uma alternativa seria a atitude crítica como arte da indocilidade refletida (COSTA, 2019, p. 179-182).

A metodologia do autor deduz um jogo que poderíamos chamar de “política da verdade”, e, nesse caso, em suas investigações sobre governamentalidade, Foucault realiza pesquisas sobre o funcionamento da política moderna no que tange práticas governamentais que realizam, de modo geral, efeitos de sujeição, todavia, o autor procura trazer à tona, também, meios para o desassujeitamento, por exemplo, o que o mesmo configura, em inspiração kantiana, como atitude crítica, entendida, por sua vez, como insurgência que é capaz de recuperar do indivíduo sua singularidade em uma manifestação fora do eixo de uniformização estabelecido.

Fundamentalmente, sua metodologia não visa uma análise de conteúdo e verificação conforme uma verdade exterior, mas objetiva a identificação de conexões entre os mecanismos de coerção e os conteúdos de conhecimento, desse modo, “aborda o conhecimento com vistas a localizar, no jogo de forças das práticas de saber-poder quais são os efeitos de verdade que ele produz e que por sua vez reforçam as relações de poder” (COSTA, 2019, p. 185).

Em conclusão, é necessário ressaltar que o neoliberalismo para Foucault faz parte de um projeto maior de suas pesquisas, ainda mais, devemos pontuar que “O Nascimento da Biopolítica” está em ponto de inflexão nos estudos de Foucault; é um trabalho inserido no contexto em que suas pesquisas investigam o eixo da governamentalidade, uma noção que remete ao modo de governo dos outros e ao governo de si mesmo. Essa definição de governo funciona como operador conceitual para considerar o sujeito enquanto agente, não apenas como objeto passivo. O autor, nessa proposta conceitual, considera um relacionamento entre o funcionamento político, que se desdobra em análises da biopolítica, e o sujeito enquanto personagem ativo na história (GALLO, 2017, p. 81).

Christian Laval explana que a compreensão de Foucault sobre o exercício dos governos modernos ou neoliberais, a partir de seu instrumental teórico das “relações de poder”, é de uma crescente universalização da regência dos comportamentos, em outras palavras, implica a incorporação de ações mediadas por relações de poder que emanam de formas de governo. Se a proposta de Foucault seria uma análise de uma virada na maneira de governar, Christian Laval argumenta que seu instrumental teórico, no conjunto de sua obra, se relaciona com os caminhos que sua reflexão tomou (LAVAL, 2020, p. 36).

Em detalhes, o conceito chave de “relação de poder” mostrou uma margem de liberdade para orientar a conduta do outro ou resistir à “condução das condutas”, ao que se deriva, o neoliberalismo atua, para além de dominações perpetuamente assimétricas, no nível da “ação sobre a ação”, em dinâmica de macro e micropolítica  (LAVAL, 2020, p. 37). Para Foucault, de acordo com o que Laval entende, a “capacidade normativa de informar as políticas que fazem os indivíduos agir na direção esperada e desejada” (2020, p. 349) é essencial, o autor direciona sua obra para a análise de discursos e técnicas, apoiada estrategicamente em uma “verdade” que emerge de um momento histórico dos poderes, que permitam esse tipo de domínio específico (LAVAL, 2020,  p. 349).

Felipe Luis, em seu artigo “Governo e Mercado” enfatiza que o filósofo francês empreende uma análise do neoliberalismo que não o considera como teoria econômica, mas como prática de governo, enquanto meio de racionalização da prática governamental no exercício da soberania política, elaborando uma teoria sobre o governo, as formas de governar, a arte de governo  (LUIZ, 2012). Felipe Luis indica que Foucault realiza uma “epistemologia política do neoliberalismo, coadunando, por outro lado, saber e poder em uma análise curiosa desta forma de governo.” (LUIS, 2012, p. 169).

Com essas considerações, “(…) um dos desafios centrais do Nascimento da biopolítica é colocar o problema das condições da elaboração de um verdadeiro questionamento da ‘governamentalidade’ neoliberal” (LAGASNERIE, 2013, p. 28). Foucault, em seu próprio texto, enfatiza que sua pesquisa se dá em torno da crise do dispositivo de governamentalidade (FOUCAULT, 2008, p. 95). Ainda mais, nas linhas do que escreve Fábio Duarte (2015), a interpretação de Foucault sobre a doutrina neoliberal parte da ótica da governamentalidade que, por sua vez, insere-se num quadro maior: a genealogia da biopolítica.[1]

O programa neoliberal é analisado por Foucault em duas formas que eram contemporâneas ao autor: o ordoliberalismo alemão da Escola de Friburgo e o neoliberalismo americano da Escola de Chicago. Para Renato Alves Aleikseivz, a conexão entre ambos está no “inimigo comum”, melhor dizendo, uma configuração do Estado que controla a economia. Contudo, Foucault compreende o neoliberalismo não somente como uma doutrina estritamente econômica, pelo contrário, sua análise reflete o fenômeno em estrito relacionamento com a produção de subjetividades (ALEIKSEIVZ, 2015, p. 620). Nessa chave de leitura, o conceito de biopolítica é central para compreensão dessa forma de controle.

Sobre a biopolítica

A biopolítica, na avaliação de Joelson Araújo, se tornou um dos conceitos mais importantes até o final da vida do autor. Em uma breve pontuação, vale lembrar que o conceito de biopolítica se modifica ao longo da obra de Foucault, o que significa que, no máximo, captamos partes de um conceito que o autor metamorfoseia ao longo de suas interpretações (ARAÚJO, 2019, p. 148-149). Não obstante, podemos dizer que o paradigma biopolítico está relacionado, sobretudo, às práticas de governação modernas, sob a premissa de que o poder não se limite à soberania de uma classe, grupo ou instituição (por exemplo, o Estado) (ARAÚJO, 2019,  p. 145). O termo foi mencionado pela primeira vez em um ensaio e nas conferências de 1974 sobre a medicina social; posteriormente, no ano de 1976, o primeiro volume da História da Sexualidade apresenta a biopolítica como uma inversão do ideal de poder da soberania (fazer morrer e deixar viver que se inverte em fazer viver e deixar morrer), esboçando, a partir dessa definição, quando a vida e a morte entram no cenário político, sofrendo regulações a partir de uma tecnologia política que funciona em conjunto com o poder disciplinar, tornando o corpo economicamente útil (FOUCAULT, 2009, p. 145-146).

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Em detalhes, acarreta a incitação, o reforço, o controle, a vigilância e etc, visando a otimização das forças que ele submete. Ao que se deriva, ele é criador, e por isso denominado positivo, produz forças e as faz crescê-las, mais do que barrá-las ou destruí-las, o que fazia o antigo poder negativo. O seu modus operandi, para produzir e incentivar de maneira calculada e administrava a vida de uma data população, é impondo genocídios aos corpos populacionais exógenos. Para ser breve, um poder em relação profunda com a vida e a morte, que escolhe a continuidade da vida de alguns e a morte de outros (LEMKE, 2001, p. 34).

Contextualizando historicamente, define-se pela tentativa, desde o século XVII, de racionalizar os problemas da prática governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em uma população, problemas crescentes desde o século XIV até o contemporâneo. Sendo o contexto desse segmento temporal o desenvolvimento das sociedades modernas e das novas relações de produção capitalista, Foucault notou um poder disciplinador e normalizador que afeta os corpos individualizados, justificado na figura do Estado, controlando, administrando, a vida e o corpo da população (LEMKE, 2001, p. 33). Ou seja, foi a partir do ordenamento capitalista em que emerge a necessidade de uma nova tecnologia de poder que age de modo a gerir e controlar as multiplicidades humanas, um ajuste dos indivíduos para novas relações de produção em desenvolvimento (LEMKE, 2001, p. 35).

O conceito foi retomado nos cursos de 1977-1979, e, principalmente, no curso a qual centralizamos (O Nascimento da Biopolítica), isto é visível mediante a perspectiva de Antonia Carla Victor de Paiva (2021) e Thomas Lemke (2001), que afirmam que os cursos “Segurança, Território, População” e “O Nascimento da Biopolítica” têm em comum o objetivo de investigar a racionalidade do Estado que faz a biopolítica funcionar.

Demonstramos, dito isso, a existência desse enquadramento da pesquisa de Foucault, uma investigação conceitual sobre a progressiva racionalização do relacionamento entre vida e política na modernidade, e, dentro desse escopo há suas reflexões sobre o neoliberalismo. No caso específico de sua análise sobre o neoliberalismo, o autor acaba, conforme pontua Frédéric Gros, analisando principalmente o liberalismo (GROS, 2013). A razão para isso está no estreito relacionamento entre a política moderna e o liberalismo, para melhor pontuar, Foucault propõe que a ascensão do liberalismo, entendido fundamentalmente como uma mudança na dinâmica dos mercados comerciais, é um elemento para um novo governo, por consequência, um novo relacionamento com a vida.

Liberalismo e mercado

De fato, em “O Nascimento da Biopolítica” Foucault observou que, a partir de meados do século XVIII, a emergência do liberalismo significou uma nova forma de governar, fator discriminado como decisivo para o aparecimento, no interior da razão governamental, de uma verdade econômica (ARAÚJO, 2019,  p. 147). Em linhas gerais, o liberalismo é uma teoria econômica, de principal expoente o escocês Adam Smith (1723-1790), que preconiza leis próprias do processo econômico. Há uma reivindicação, nesse discurso, de que o poder, assim como a verdade, não está somente nas mãos do soberano. Rosanvallon delimita que o conceito é estabelecido como oposição ao de contrato, apresentando o mercado/economia como o verdadeiro regular da sociedade, não o contrato/política (ROSANVALLON, 2002, p. 9-11).

Foucault averigua que o funcionamento interno do mercado, durante a Idade Média, nos séculos XVI-XVII, era essencialmente um lugar de justiça (FOUCAULT, 2008, p. 42); isso ocorre, na interpretação de Foucault, por conta de leis internas do funcionamento do mercado, com regulamentações sobre os produtos, uma noção de justiça sobre os preços e um espaço protegido para o comprador (sanção da fraude), esse sistema tripartite fazia que o mercado “funcionasse realmente como um lugar de justiça, um lugar em que devia aparecer na troca e se formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o mercado era um lugar de jurisdição” (FOUCAULT, 2008, p. 43). Já em meados do século XVIII, por um lado, o mercado passa a ser interpretado como uma derivação de mecanismos naturais ou espontâneos, por outro lado, o mercado se torna um lugar de verdade. Tal acontecimento está inscrito na progressividade pela qual um certo preço vai ser metamorfoseado em preço verdadeiro, um preço que vai oscilar em torno do valor do produto, já não trazendo consigo conotações de justiça; em outras palavras, o preço se derivará não do tácito entre comerciante e comprador, mas de certo valor que é próprio do produto que advém naturalmente do mercado enquanto lugar de veridicção.

O mercado, passando a ser revelador de algo como uma verdade, torna-se lugar de verificabilidade/falsidade para a prática governamental, por consequência, torna-se o principal governante, formulando a regra e norma à prática governamental (FOUCAULT, 2008, p. 42-45). Nesse contexto histórico, marcado por uma nova forma de governar, nasce a biopolítica, em um momento onde os corpos serão adestrados segundo as bases de verificação próprias do mercado. Para Foucault, é justamente só depois “(…) que soubermos o que era esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos, parece-me, apreender o que é a biopolítica” (FOUCAULT, 2008, p. 30). O encadeamento, segundo Daniel Luis Cidade Gonçalves e Frédéric Gros, é que encontramos no liberalismo uma operação biopolítica que consistirá em despolitizar o sujeito, transformando certas tendências vitais, características biológicas fundamentais dos indivíduos ou da espécie humana, tendo em vista o objetivo de aumentar as forças econômicas e políticas (GONÇALVES, 2015, p. 611-612). Por um lado, poderíamos apresentar um resumo do que vimos até aqui, uma caracterização de biopolítica é que possui como objeto principal a população, como saber privilegiado a economia e como mecanismos básicos de atuação os dispositivos de segurança (DUARTE, 2015, p. 466); por outro lado, Foucault explana uma perspectiva mais ampla em que o conceito se origina, em suas palavras, constatado um:

(…) poder sobre a vida [que] desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.

(FOUCAULT, 2009, p. 131).

Em sua dualidade, a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens, e a biopolítica se dirige à multiplicidade dos homens enquanto massa global, afetada por processos próprios da vida. Thomas Lemke indica que a vida e os seus mecanismos entraram nos cálculos explícitos do poder e do saber, enquanto estes se tornaram agentes de transformação da vida, a espécie tornou-se grande variável nas próprias estratégias políticas. Governos, portanto, traçam relação com a vida o homem enquanto ser vivo, em um sentido de que não se fazem lutas, ou não se conquista legitimidade, em nome de antigos direitos, mas em nome de sua vida, necessidades fundamentais, realização de suas virtualidades. Lemke demonstra o encadeamento: se por um lado a vida foi tomada pelo poder como objeto político, ela também foi revirada pelo poder que tomou seu controle, ao passo que, o direito à vida e ao corpo são réplicas políticas aos novos procedimentos do poder (LEMKE, 2001, p.28-29). Por meio desses mecanismos de disciplina e regulamentação, segundo Foucault, a partir do século XIX o poder cobre toda a superfície que se estende do orgânico ao neolítico, do corpo à população (FOUCAULT, 2010, p. 213).

Foucault acaba por refletir sobre a incidência do poder sobre a vida em uma série de políticas voltadas para o indivíduo/corpo-espécie, relatando um processo de adequação geral aos processos econômicos, assinalando disciplinas e a regulação das populações como contraponto às liberdades formais e jurídicas modernas (DUARTE, 2015, p. 445). Portanto, o autor assinala o ingresso da vida nos cálculos e procedimentos do poder, a inserção da vida na ordem jurídico-política do Estado-nação. Por consequência, interpretamos que Foucault não concebe o Estado como aspecto para “modernização”, em verdade, o autor parece voltar sua atenção para os princípios econômicos que antecedem uma determinada configuração de Estado, isto posto, o que poderíamos chamar de políticas de gestão da vida, ou políticas voltadas para o público, são problematizadas na medida em que podem ser instauradas não devido ao altruísmo do funcionamento do órgão público, mas devido à lógica predominante do regime econômico.

Em nossa interpretação, concordamos que Foucault objetiva, em partes, por uma genealogia do liberalismo econômico e da governamentalidade liberal, mas acrescentamos que o objetivo maior aparenta ser refletir no liberalismo como elemento fundante do processo de racionalização da prática governamental no exercício da soberania política.

Racismo e neoliberalismo

Foucault, em pesquisas anteriores, reputa que não há contradições entre um governo preocupado essencialmente com a vida e que, mesmo assim, mantém o direito de matar. Para o autor, o mecanismo de articulação entre ambos, regulação da vida e poder de morte, é o racismo; a operação do racismo, em Foucault, é compreendido a partir de duas funções: a primeira é instrumentalizar um corte biológico para classificar a humanidade, ou seja, dividir a espécie em raças e subdividindo a população no mesmo princípio (FOUCAULT, 2010, p. 214); a segunda, destaca Foucault, é legitimar a morte do outro a partir desse primeiro movimento de hierarquização, de outro modo, instrumentalizar a morte em nome do fortalecimento da própria espécie ou da raça, contra o degenerado ou do anormal, deixando a vida mais “pura” (FOUCAULT, 2010, p. 215). A solução do paradoxo, desse modo, é que as mortes serão justificadas por conta de um mecanismo de seletividade que resulta do racismo, agindo como um padrão normativo.

Em suma, Foucault destrincha que ao par e passo que existe um processo de regulação sobre a vida para, supostamente, viver de forma “civilizada”, coexiste os que são deixados de fora do projeto, mantidos em uma espécie de guerra contínua. A interpretação de Achille Mbembe ressalta que o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, regulando a distribuição da morte e tornando possível as funções assassinas do Estado, condição de aceitabilidade do fazer morrer do velho direito soberano (MBEMBE, 2018, p. 17). Foucault, reitera Achille Mbembe, afirma que o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder são constitutivos do poder do Estado na modernidade (MBEMBE, 2018, p. 19).

Gostaríamos de chamar atenção para o fato que Mbembe, ao pensar o racismo em Foucault, descreve tal análise como algo “aparentemente familiar” ao racismo (MBEMBE, 2018, p. 16). Seguindo essa direção, a qual não necessariamente Foucault disserta sobre a totalidade do racismo (afinal, talvez seja mais produtivo considerarmos diversas configurações para o racismo ao longo da história, em dimensões multifacetadas), desse modo, parece plausível que Foucault realiza uma espécíe de recorte epistemológico para considerar somente a Europa em sua definição de moderna racismo, dado que, em uma interpretação, o autor parece se direcionar para os elementos fundamentais do regime nazista (FOUCAULT, 2009, p. 197). Consideramos, seguindo o caminho aberto por Mbembe, que Foucault talvez não seja a definição final sobre o racismo.

Contudo, conforme interpretamos de sua investigação sobre a biopolítica, aparenta que esse princípio de organização hierarquizada não desaparece completamente, pelo contrário, podemos entender que um eixo da noção de governamentalidade procura analisar formas de hierarquização que se tornam tendência na organização social contemporânea. Em uma interpretação, pode ser que Foucault logrou demonstrar que um elemento chave na forma de condução dos indivíduos no neoliberalismo é algo “aparentemente familiar” ao racismo, talvez esse seja o sentido geral que o autor atrela para as subjetividades competitivas, revelando, nas entrelinhas de suas pesquisas sobre biopolítica, que o plano de fundo para vincular “pureza” à vida deixou de ser a raça para se tornar o mercado. Estrito modo:

A questão da luta é reabilitar uma concepção moderna aceitável de desigualdade entre os indivíduos, que não se liga nem ao racismo biológico nem ao chauvinismo nacional, mas apenas aos estímulos da concorrência entre todos. A desigualdade é o produto de um processo que supostamente não deve nada a qualquer desígnio voluntário.

(DARDOT; LAVAL, 2021, p. 155).

Interpretamos que nesse momento de suas pesquisas, o autor tentava indagar qual seria o elemento que condicionava as mortes no mundo contemporâneo, e, especialmente neste curso, sua interpretação privilegia o mercado como elemento que afirma a biopolítica. Não acreditamos que o autor realiza um movimento de desqualificar, ou elencar um fim, para a raça como instrumental para a guerra, todavia, destaca outros elementos que participam da guerra contemporânea; nesse sentido, um subtexto do trabalho de Foucault pode ser demonstrar que postulados que antes eram associados ao nazismo continuam existindo no mundo contemporâneo, apenas com outro plano de fundo.

Em nosso caso, esse componente de longo prazo da política ocidental, o mercado, ganha um enfoque excepcional no período contemporâneo a Foucault, isto é, no momento em que, para além de uma articulação da política alemã/americana, há incidência de um governo em forte associação com o mercado nesses casos. Para Lemke, Foucault percebe que as novas formas de controle da biopolítica estão no eixo flexível sobre as economias de mercado influenciadas pelo neoliberalismo econômico (LEMKE, 2001, p. 34). Desse modo, seria preciso governar para o mercado, o mercado se torna instância suprema de formação da verdade no mundo contemporâneo, ele é quem define os meios de veridicção. Assim sendo, Foucault pensou formas de controle e governo das populações de acordo como elas se exercem por meio das regras da economia de mercado globalizada, de outro modo, o movimento do mercado é quem define as ações dos governantes. Em vista disso, o remodelar das relações entre indivíduos, em um jogo de incitações de tipo concorrencial, é matriz da eficiência neoliberal de governança.

A alternativa neoliberal coloca no centro de uma “política social” a regra do mercado, em uma frase, a estrutura determinante torna-se a concorrência e forma-se uma nova humanidade (LAVAL, 2020, p. 170). A implicação disso, a delimitação que o liberalismo clássico e a economia configuram princípios que pautam um conjunto de práticas de governamento de condutas humanas, é sua advertência sobre o neoliberalismo. Foucault, em nossa perspectiva, fez a história do processo que resulta, com a emergência do neoliberalismo no século XX, em um cidadão que não será assunto de direitos, mas assunto de empreendimento (ALEIKSEIVZ, 2015, p. 623).

O neoliberalismo, portanto, se propõe como forma de vida baseada no jogo da concorrência, não como uma imposição feita de cima, mas como um meio para que os indivíduos sejam constituídos nos moldes de uma subjetividade empresarial, sem se dar conta que são governados. Para melhor detalhar o processo, poderíamos dizer que o princípio de regulação do poder sobre os indivíduos se dá em termos econômicos, fomentando um sujeito político que é entendido como um indivíduo em que o “auto-interesse natural” ou a sua “tendência à competição” precisam ser incentivados; nesse sentido, existe uma imposição sobre o sujeito, uma subjetivação (ALEIKSEIVZ, 2015, p. 624-625).

A decorrência maior aparenta ser a sujeição em que o indivíduo é empresário de si mesmo, governável e dócil, em uma conduta que se transforma em atividade econômica porque o corpo pode ser compreendido como lugar do capital, é o fenômeno do Homo Oeconomicus (Homem Econômico) ou o sujeito neoliberal (ALEIKSEIVZ, 2015, p. 623-625). Seguindo a esteira desse pensamento, Thomas Lemke (2001) e Christian Laval (2020) destacam, em ambas as considerações finais, a interpretação de que Foucault associa o neoliberalismo principalmente a construção dos homens econômicos, levados a uma formação competitiva e a uma vida financeira, regidos por instituições, normas, leis e subjetividades, em outras palavras, respondem aos estímulos do mercados mais do que qualquer outra coisa.

Em geral, a perspectiva foucaultiana considera que o privilégio de alguns na modernidade não teve fundamento o altruísmo, mas o controle social; além disso, esse privilégio foi condicionado por algo semelhante ao racismo, uma série de mecanismos de hierarquização social, que mantém continuidade no mundo contemporâneo, e entendemos que, desta vez, por meio do mercado.

 Destacamos a interpretação de que esse processo biopolítico averigua a capacidade de revoltar-se da população, contra o racismo por exemplo, afinal, é isso que começa a sofrer influência conforme os governos liberais; para melhor pontuar, o que Foucault apresenta, em investigação essencialmente biopolítica, é a história de um projeto de despolitização que advém, em seus princípios, desde o liberalismo de meados do século XVIII, e, no século XX, com a emergência de um outro tipo de liberalismo, o filósofo anuncia indícios de continuidades desse projeto.

Assim sendo, interpretamos que para o autor, conforme sua aula de 14 de fevereiro de 1979, há forte proximidade entre o princípio norteador da atividade econômica do liberalismo econômico (a troca) e o princípio norteador da atividade econômica do neoliberalismo (a concorrência). O autor indica que os neoliberais alemães, para além do âmbito estritamente econômico, procuravam submeter uma sociedade à dinâmica concorrencial (uma ideia de sociedade que os neoliberais norte-americanos irão radicalizar) (FOUCAULT, 2008, p. 201); podemos concluir que foi, em processo semelhante,

(…) a partir dos procedimentos (regulação biopolítica) e individuação (normalização disciplinar) que racionalidades políticas, como o liberalismo moderno e as várias vertentes do neoliberalismo contemporâneo puderam ser entendidas como técnicas de governamentalidade .

(CANDIOTTO, 2011, p. 471)


            Embora semelhante, Foucault enfatiza também diferenças em relação ao liberalismo clássico. O autor indica, sobretudo, que são diferentes os relacionamentos com o Estado, ao passo que, o liberalismo era “uma formalização geral dos poderes do Estado e da organização da sociedade a partir de uma economia de mercado.” (FOUCAULT, 2008, p. 160) e o neoliberalismo, por sua vez, parte da suposição de que o Estado não existe para perguntar-se “como fazê-lo existir a partir desse espaço não estatal que é o de uma liberdade econômica?” (FOUCAULT, 2008, p. 117). O aparato público a ser construído se faz “(…) sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção permanente.” (FOUCAULT, 2008, p. 181-2), essa intervenção, em um princípio regulador, tem como meta a racionalidade do mercado, enfatizando que o essencial do mercado é a concorrência (DUARTE, 2015, p. 450-452). Veiga-Neto explana sobre as consequências ao processo:

O princípio de inteligibilidade do neoliberalismo passa a ser a competição: a governamentalidade neoliberal intervirá para maximizar a competição, para produzir liberdade para que todos possam estar no jogo econômico. Dessa maneira, o neoliberalismo constantemente produz e consome liberdade. Isso equivale a dizer que a própria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo

(VEIGA-NETO, 2011, p. 39).

Ao passo que Foucault entende o neoliberalismo como “uma nova programação da governamentalidade liberal” (FOUCAULT, 2004, p. 127), poderíamos expandir tal concepção e pensar de acordo com Wendy Brown, autora que versa sobre consequências políticas para o processo. Brown explica como a universalização do mercado, a produção de tudo na imagem de um mercado, implica um desmanche da democracia, da política e da organização popular. A autora corrobora com a noção de que o neoliberalismo “economizou” a democracia e, sendo feita aos moldes do mercado, certos princípios fundamentais da democracia, como a equidade, se perdem em nome da inequidade que é necessária à concorrência.

O resultado desse modelo é a desmobilização, a competitividade, a violência entre classe, enfim, é visível o desfazer da atuação popular dado que o sonho da Margaret Thatcher se tornou realidade (não há uma sociedade, apenas indivíduos). Ainda mais, uma vez que a democracia se desfaz, na medida em que mercados se tornam forma de governo, emerge um ciclo de crise política, dado que mercados operam por meio de crises, desigualdades e vulnerabilidades, algo que, combinado com um projeto de sociedade onde o indivíduo é despolitizado, encaminha para aspiração à algo diferente da política institucional democrática, por exemplo, a extrema direita, em uma política que, via de regra, prega um retorno à ordem por meio de pautas conservadoras (BROWN, 2015).

É de se sublinhar que, na interpretação de Antonia Carla Víctor de Paiva, a concepção de Foucault sobre o funcionamento do neoliberalismo detém como aspecto central a regência de subjetividades para minar a consciência de coletividade e lutas coletivas (PAIVA, 2021, p. 9-10). Em extensão, a autora ainda observa que o processo de economização da vida expande-se para instituições que regem a democracia, em suas palavras: “Os efeitos dessa racionalidade neoliberal estão na destruição das bases democráticas que, se não há coletividade e sim individualidade, então não poder haver soberania popular, nem comunidade, acarretando em uma desdemocratização” (PAIVA, 2021, p. 8). Antonia Carla Víctor de Paiva, a partir da compreensão foucaultiana, conclui que o neoliberalismo mina a coletividade por conta da “democratização” da competição, ocasionando a desigualdade ao produzir subjetividades que existem para o capitalismo (PAIVA, 2021, p. 7).

Ainda assim, na interpretação de Sílvio Gallo e Joelson Araújo, a resistência, em termos foucaultianos, pode ser a afirmação da vida para além de todo governo, afastando-se das técnicas de individualização e dos procedimentos de totalização às quais somos sujeitados por estruturas do poder moderno, em direção à criação de novas formas de subjetividade, em maior liberdade (PAIVA, 2021, p. 90-92). Sobre esse tópico, o objetivo de Foucault, para Christian Laval, é de criar uma arte de governar e de se governar, reinvenção de nós mesmos, mediante a invenção de práticas. A compreensão foucaultiana passa desde formas de sujeição até práticas da invenção de si. O autor deixa em aberto, nesse sentido, duas questões: o que iria emergir dessa produção e de que modo, especificamente, tal transmutação seria possível. De todo modo, ao tomar o neoliberalismo como um modo de governo de gênero histórico específico, constata que a resposta política está no terreno das normas e práticas, a emancipação consiste não em encontrar sua verdadeira natureza, mas em produzir a si próprio por meio de práticas de liberdade, reinventando práticas utópicas (LAVAL, 2020, p. 348-351).

Considerações Finais


De modo geral, Foucault parece bem atrelado ao princípio metodológico de que não há uma verdadeira natureza, no sentido abstrato, que seria condição para a emancipação. Com base nesse movimento, parece que o intuito do autor não era capturar a “essência” do que é o neoliberalismo, vide sua metodologia fundamentalmente contra universalizações abstratas, e sim priorizar uma análise do neoliberalismo em sua manifestação mediante um particular conjunto de condições históricas; ao que se deriva, argumentamos que a análise do fenômeno histórico que nos transpassa pode ser um importante elemento para nossa emancipação.

A análise de Foucault se direciona, sobretudo, no sentido de não interpretar um único e mecânico funcionamento para esse complexo fenômeno histórico, e sim o oposto, em “O Nascimento da Biopolítica” há um constante e enfático alerta sobre o processo histórico, as raízes históricas, que gestam o neoliberalismo via condições específicas. Ainda mais, o que o autor propõe é pensar relações históricas, em processo gradual, não somente no que diz sobre o político-econômico, mas também no solo epistemológico. Portanto, o autor estava mais alinhado com a premissa de destacar reverberações do fenômeno com o funcionamento da modernidade, em uma premissa de trazer à tona os processos não somente materiais/objetivos que controlavam a capacidade de mudança dos indivíduos, pois, relembramos, é sobre o eixo biopolítico que enquadrou sua análise do neoliberalismo. Assim sendo, em seu ofício histórico, priorizou o encadeamento de processos de controle social, mecanismos de disciplinamento para o conjunto da sociedade, estabelecendo padrões e vigiando os desvios, a qual o autor relaciona com o capitalismo contemporâneo.

Um aspecto importante de sua análise, portanto, era um determinado fazer histórico. Entendemos que, para Foucault, interpretações que seguem uma linha de universalidade abstrata funcionam como fundamento para não atuarmos politicamente com as certezas que pesquisas históricas condicionam. Desse modo, percebemos que a advertência de Foucault é que é mais produtivo análises que privilegiam a militância em um contexto histórico, deduzimos que sua metodologia salienta propostas de mudança social. Essa dedução nos leva a pensar que essa perspectiva parece especialmente ligada com o modo em que Foucault prescrevia a função do intelectual, isto é, um formador de saber que não deve ser, de forma alguma, isento da atuação política no seu próprio contexto (MACHADO, 2021, Introdução).

Acreditamos que o caráter dessa metodologia/posicionamento está associado com a proposta de ruptura radical com a experiência limitante que é coagida aos sujeitos modernos, ou seja, a interpretação de Foucault se direciona para o indivíduo na intenção de criticar o processo em que o mesmo é constituído de modo a perder sua capacidade de revolucionar-se coletivamente. Em nossa interpretação, é nessa premissa que o autor reivindica uma outra concepção de liberdade que não a do neoliberalismo. Segundo o autor, o trabalho histórico, a ontologia crítica de nós mesmos, deve ser entendido

(…) não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula: é preciso concebê-la como uma atitude, um ethos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível

(FOUCAULT, 2008, p. 351).

Em suma, Foucault realiza uma investigação sobre os modos de controle social impostos à população que se modificam a partir de uma determinada configuração de princípios econômicos, processo que resulta em algo que poderíamos conceber como as raízes da formação do neoliberalismo, e assumimos que o autor realiza essa investigação no sentido de enfatizar um projeto da modernidade de partes da Europa: a homogeneidade populacional. Contudo, sua empreitada é também minar o funcionamento desse projeto, apontando suas falhas e mistificações, incitando que a população afirme a heterogeneidade que lhe é própria por meio de resistências. Ao que se deriva, um fator determinante para atribuir ao neoliberalismo um caráter abstração, que desqualifica resistências e atuações políticas, pode se derivar do projeto essencialmente moderno de conceber viabilidade ao preceito de universalização distante da grade das experiências.

Concluímos que Foucault regia suas análises no postulado de que pouco importa algo como a alma do neoliberalismo, em outras palavras, a compreensão abstrata do fenômeno, importa apenas como poderíamos direcionar nosso corpo, entendido como capacidade de resistência e insurgência, rumo à liberdade em relação às práticas de governo do neoliberalismo, em sua manifestação histórica, nos impõe. Nesse sentido, para Foucault, a alma é um efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma é a prisão do corpo.[2]

Em termos mais práticos, entendemos que Foucault ressalta que neoliberalismo não é somente “objetivo”, todavia, o plano de fundo das análises que versam sobre “subjetividades” é o intuito de transformar nossa realidade, desse modo, não se deve universalizar as categorias e conceitualizações sobre o fenômeno na intenção de captar o funcionamento geral do neoliberalismo em manifestação abstrata, pelo contrário, devemos descobrir e declarar a verdade da política do fenômeno em sua manifestação histórica, constatando a maneira pelo qual certas práticas governamentais contemporâneas afetam, por exemplo, o povo brasileiro tanto em sua dimensão objetiva como em sua dimensão subjetiva, principalmente, para pensar em mudanças sociais embasadas nessas pesquisas. Assim sendo, nosso instrumental de análise deve reforçar a resistência política, um princípio em que Foucault pratica em suas pesquisas. Justamente, o conselho de Christian Laval era ler o filósofo não como um corpo teórico fechado, a ser retomado em bloco ou repetido dogmaticamente, mas como um autor que legou à posteridade novas pesquisas e novos caminhos (LAVAL, 2020, p. 351).

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[1] Sobre a biopolítica, há uma série de autores que, mais ou menos, seguem ou têm proximidade com essa linha de pesquisa, alguns deles são: Achille Mbembe, Giorgio Agamben, Hannah Arendt e Roberto Esposito.

[2] Essa citação pertence à obra “Vigiar e Punir” (1987) e utilizamos partes de seu sentido original, a qual não versava sobre o neoliberalismo, para realizar tal constatação.


Imagem em destaque: Jornal da USP

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