Em “Minha luta – Um outro amor“, Karl descreve e investiga, narra e traça perfis, com constância e cadência; é assim que mergulhamos na ordem aparente das coisas do mundo do personagem (ou o mundo das coisas do escritor), e então nos deparamos diante do complexo emaranhado de existências simultâneas e relacionais que existem em profundidade em cada uma das experiências do personagem, do escritor.

    (Não escrevo resenhas literárias ou crítica literária.)

    (Porque não sei dizer nada sobre os livros que li. Sei apenas o que me tornei depois deles.)

    Não sou homem de grandes conquistas ou feitos honrosos. Nunca fui muito longe. A maioria das pessoas que conheço já visitou algumas outras cidades, estados, países e até continentes, distantes daqueles que as abrigam. Planos, dinheiro, ousadia: Tudo acumulado durante meses, e anos até, para levá-las para bem longe. Eu, quieto e incapaz de armazenar ousadia e dinheiro suficientes para alçar um voo que me levasse para tão longe, entendo agora (não me orgulho tanto assim) que só conheço dois continentes (Vovô e Vovó) e dois Estados (Mamãe e São Paulo): Morei nos continentes-avós até o dia que eles deixaram de existir. Largos, imensos, extensos, acolhedores. Foi o mais longe que consegui chegar. O que não significa que estive sempre e apenas na superfície de todas essas relações. Eu dizia: Deem–me seus significados, e no final serei todos os meus.

    Do continente-avô herdei a disposição para contemplar. Ele possuía um olhar encontrado, um olhar que encerrava tudo. Vivíamos numa cidade rural em sua maioria, e não nos era proporcionado um feito que no salvasse e levasse adiante, para fora dali. Vovô dialogava com tudo que o rodeava e parecia entender as pessoas ao redor e o mundo delas, porque suspirava como se tivesse todas as respostas para as perguntas que eu sempre me fazia. Estávamos fadados a continuar ali por muito mais tempo, então afundávamos na contemplação redentora do cotidiano.

    Há algum tempo, uma amiga e eu estávamos sentados esperando outro amigo que experimentava uma roupa no provador de uma loja movimentada. Eu não estava ali, e ela observou. Disse: Gosto de te ver olhando o mundo. Eu quis entender e questionei. E ela se limitou a dizer: Sei lá… Como se você nunca fosse conseguir ser tudo que essas pessoas são. E daí dá pra entender o porquê de você nunca estar aqui.

    Ao ler “Um outro amor”, lembrei-me das palavras da minha amiga sobre minha imersão, e compreendi a experiência que tive ao ler Karl Ove (diversos reconhecimentos e catarses), a viagem que fiz para dentro de todas as pessoas em eventos corriqueiros, para fora delas a viverem na Noruega, as voltas comparativa feitas na Suécia. Lugares que nunca visitei.
    Karl descreve e investiga, narra e traça perfis, com constância e cadência; é assim que mergulhamos na ordem aparente das coisas do mundo do personagem (ou o mundo das coisas do escritor), e então nos deparamos diante do complexo emaranhado de existências simultâneas e relacionais que existem em profundidade em cada uma das experiências do personagem, do escritor. Karl está na superfície, e é lá que mora a estranheza, mas, no instante seguinte, um parágrafo pisca os olhos, e já mergulhamos em outra vida que ele observa, resgatada de sua simplicidade inequívoca, no entanto, grandiosa e irredutível. Como ele consegue: Como o autor consegue manter esses movimentos de dentro-fora, amplo-estreito? Como o leitor não desiste, cansado, desses movimentos propostos pelo autor/personagem? Que reconhecimento nos aproxima, os leitores, do personagem principal e de toda a constelação de vidas comuns e imensas?

    Tudo que é comum tem vida e atinge o personagem-escritor. Um estranho com uma gaita, uma mulher mal vestida desconhecida, uma criança de touca com forro de pele, tudo atiça estranheza em Karl Ove e provoca “um tumulto” dentro dele. A vida das filhas, a beleza das descobertas dele, nada salva Karl Ove do mormaço, da falta impregnada de vontade de ser outro tipo de homem. Pessoas comuns em eventos igualmente comuns. Algo comum que leva a algo maior, gigante, mas não numa relação de causa-efeito, e, sim, de estagnação e inércia. A banalidade de um evento corriqueiro nos faz pensar a respeito da ordem comum e amistosa que é a vida de Karl Ove, e resgata (a todo instante) na consciência do leitor o quanto ele vive repetido ao banal extraordinário que é o cotidiano. Em alguns momentos do livro, mantive-me abismado: preso ao abismo que é deixar-se cair da superfície corriqueira da vida, e deixar-se adensar, fluir, cair e afundar.

    Conheça também: Uma temporada no escuro (Karl Ove Knausgard)

    A vida displicente (em aparência) de qualquer desconhecido leva Karl a aproximar-se de uma distancia reveladora que carrega consigo (há muito tempo, desde o volume I da série Minha Luta, e o aproxima de todas as pessoas (Linda, Geir, Helena, Anders…) que partilham com ele suas intimidades. Uma constelação de profundidades conhecidas e desconhecidas se expõe no céu iluminado de Karl Ove, e são engolidas pela escuridão desconhecida que nasce nele na palavra seguinte.

    Karl, o personagem, está cheio de mundo: preso a ele, enfadado, mas não é um fardo viver no mundo que carrega. Reflexões consistentes, de mãos dadas com a displicência de uma mesmice sempre a mesma, sobre o que vem do Sempre Mais do Mesmo. Ele enxerga os “momentos grandes” que existem“nos momentos pequenos”.

    O livro é sobre tudo que há no mundo, e sobre o nada que esse mundo, às vezes, desperta. Nunca é apenas a superfície. Sempre é algo mais que habita a profundeza dos homens e mulheres que o cercam. Mas o personagem principal/autor não apela para a autocomiseração inconsciente através da qual alguns personagens de outras obras costumam se arrastar longa e cansativamente. Karl é aquilo que experimenta. Difícil o leitor situar-se apenas em extremos do que experimenta ao ler.

    Karl também se diz admirador do mundo descrito por Dostoievski, no entanto, sente-se desconfortável ao lê-lo. Não aconteceu comigo ao ler todas as impressões de Karl Ove sobre a leitura de Dostoievski, ou ao ler as impressões de Karl Over sobre o mundo. Aquele, o mundo descrito, era o meu mundo: cínico, verdadeiramente forçado, acomodado, prazerosamente limitado e impossível de ser vivido em sua imensa totalidade e beleza. Não que eu algum dia tenha chegado perto da Noruega. Mas não é apenas sobre o mundo físico; o que importa na obra de Karl Ove, desde o primeiro volume até este segundo, é a representação do mundo a partir de todas as experiências que moldam quem as vive, e como a vida a partir dali não será outra coisa senão o que restar dela.

    Para o autor, na obra de Tolstói vemos “explicações longas e abrangentes que não pretende ser nada além disso” (pág.98); o foco no fenômeno objetivo. E ao ler Dostoiévski é possível concluir que sempre existe um aspecto humano ausente, a saber, aquilo que nos liga a tudo aquilo que está fora de nós.(pág.98). Karl mantém-se entre Tolstói (descrição de paisagens, interiores físicos, espaços, ocupações, modos, costumes) e Dostoiévski (existe sempre algo escondido por trás de tudo, um drama da alma, um aspecto humano obscuro e significativo).

    Está entre Tolstói e Dostoiévski, mas não pretende manter-se acima deles; e se em algum momento do livro, o personagem não reconhece seus mérito como autor renomado, é porque o autor renomado não se enxerga como tal; entende-se comum, e desentende-se importante. O que interessa não é o que ele (autor da obra/personagem do mundo) pensa sobre si, sobre o mundo que o rodeia, o que importa é o que o leitor constrói a partir da leitura; que palavras farão sentido, que mundo será construído, destruído, o que sobreviverá ao caos invisível que se estabelece nas repetições ordinárias de feitos banais.

    Karl absorve o mundo: ao descrevê-lo, longe de tentar explicá-lo, e incorpora o mundo: ao traçar linhas contínuas de conexões entre homens e mulheres que desconhece. A intenção de manter-se distante do mundo é latente, uma sugestão discreta, mas a disposição para executar um comportamento que dissolva o mormaço mantém-se adormecida e ferida nas garras macias daquela finalidade conformada.

    Há uma iminência de desistência do personagem-Karl no livro inteiro; uma ânsia que se veste de persistência petulante, mas discreta, e continua a seguir bravamente com todas as decisões tomadas. Tem algo, durante o livro todo, escorregando a todo o momento da superfície para o interior do leitor; uma verdade que não é absoluta, e também não se refere a algo absurdo e improvável: não é sobre o amor, ou paternidade, não se trata de amarguras passadas, ou sobre conquistas recentes, não é tudo sobre ser criança, nem sobre ser adulto, sobre pais displicentes e de afeto fragilizado. Por isso é uma obra precisa, e por isso também é um livro indefinível. Ou eu que nunca soube lidar com grandiosidade e arrebatamento.

    A força absurda da palavra escrita. A superfície do mundo rompida lentamente por cada palavra escrita. Os significados do mundo. A forma bem cuidada de uma narrativa lenta, pormenorizada, que acompanha a impressão de lentidão do mundo, e que, na verdade, é tão veloz que é impossível absorver tudo em apenas algumas poucas páginas. A palavra é o que abre o mundo para o leitor, que o desvenda, e isso não significa que a palavra tem a força de desvendar tudo o que o mundo é por completo. Karl não propõe mistério algum, nem solução para nada.

    Karl Ove sussurra a todo instante:
    Deem-me seus significados,
    Deem-me seus significados,
    Deem-me seus significados,
    No final, continuarei a ser todos os meus.


    Karl Ove Knausgard in Helsinki, Finlnad - 29 Sep 2011

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