Se ler um poema de Drummond é uma grande descoberta. Um livro todo propõe ao leitor muitos novos significados, que caminham entre a vida do autor, a vida de cada um de nós e também uma representação de como o mundo é. Boitempo é um livro necessário para o mundo!

    Um som que liga o passado / ao futuro, ao mais que o tempo, / e no entardecer escuro / abre um clarão. / Já não somos prisioneiros / de um emprego, de uma região. / Precipitadas no espaço, / ao sopro do sino Elias, / nossa vida, nossa morte, / nossa raiz mais trançada, / nossa poeira mais fina, / esperança descarnada, / se dispersam no universo. / Chega Elias, é demais.
    (Sino, p. 31.)

    Ler Boitempo – esquecer para lembrar é um retorno à própria infância e também à história dos outros, que ouvimos de familiares e amigos e, claro, também de Carlos Drummond de Andrade. Porque Boitempo é uma palavra que ele inventou, que significa o bom tempo da infância que ele teve no interior de Minas Gerais, mesmo não sendo todas as lembranças felizes, são elas que ainda representam o homem da cidade, a partir de uma mistura nostálgica de sentimentos, sensações e aprendizados.

    O livro está dividido em quatro partes, cada uma delas representam uma fase da vida, o caminho natural das coisas: Repertório Urbano, Primeiro Colégio, Fria Friburgo e Mocidade Solta.

    As lembranças de uma infância

    Sendo o tema principal as lembranças da infância pelo olhar de um homem adulto, podemos também distinguir subtemas, intercalados e repetidos ao longo de todo livro que revela o Drummond que todos conhecemos, que é capaz de falar do cotidiano com uma intensidade tão forte que atinge as análises existenciais de cada um de nós e também o que está na própria literatura moderna.

    A literatura, como uma representação social, do artista, da pessoa, do olhar dele para com o mundo, pode nos afirmar e também desestruturas vários significados e certezas. A poesia de Drummond consegue com uma bela simplicidade atingir as características, tão, subjetivas, do que consideramos literatura. É a compreensão que atinge o leitor página a página. É também o estranhamento, pela linguagem tão rica e seca; “lúcida e crítica“, como informa o prefácio de Josué Montello.

    O tempo e as cidades

    E Boitempo, na primeira parte Drummond escreve sobre o tempo das pequenas cidades. Há a forte presença da igreja (na praça central, como se ali demonstrasse todo o poder sobre cada cidadão). Temos também pessoas na janela, que ninguém sabe como chegou lá. Ainda cabe observações da política, da sociedade (hipócrita, consumista…), de relacionamento e casamento.

    Que coisa-bicho
    Que estranheza preto-lustrosa
    evém-vindo pelo barro afora?

    É o automóvel de Chico Osório
    é o anúncio da nova aurora
    é o primeiro carro, o Ford primeiro
    é a sentença do fim do cavalo
    do fim da tropa, do fim da roda
    do carro de boi.

    Lá vem puxado por junta de bois.

    (Primeiro Automóvel, p. 67)

    Em seguida, temos o “Primeiro Colégio” que, literalmente nos mostra a criança em seus primeiros dias de aula. Todos os desejos e anseios ali presente, até que chega a explosão do questionamento das normas inseridas naquele colégio (interno) resultado da natural rebeldia dos adolescentes. O clima é melancólico, mas também divertidamente dramático.

    Se triste é ir para o colégio distante,
    fica mais triste ainda
    ao ver Sebastião Ramos chorando no ombro de meu pai:

    (…)

    Ei, Sebastião Ramos, faz assim não na minha frente!
    Também estou perdido: morte no internato.
    Morrer vivo o ano inteiro é mais morrer
    embora ninguém perceba
    e ficarei sem ombro
    para acalentar a minha morte.
    Ó Sebastião Ramos, você roubou meu ombro.

    (Ombro, p. 139)

    Perder a inocência…

    É em “Fria Friburgo” que Drummond mostra a perda da inocência. Aquele garoto com medo da igreja e depois da escola com os seus severos padres, não existe mais. O que existe são os frágeis passos de um garoto que passa a conhecer um pouco mais do mundo.

    Sou anarquista. Declaro honestamente.
    (A tarde vai cerzindo no recreio
    o pano de entrecortada confissão.)
    Espanto, susto. Como?
    O quê? Por quê? Explica essa besteira

    A solução é a anarquia. Sou
    anarquista. Nem de longe vocês captam
    o sublime anarquismo. Sou.
    Com muita honra. Mas vocês, que são?
    Vocês são uns carneiros
    de lã obediente.

    (…)

    (Segundo dia, p. 158)

    Boitempo também é sobre a solidão das cidades…

    E então chegamos a “Mocidade Adulta”, nela Drummond mais parece aquele que conhecemos em sua total crueza. A solidão das cidades fica intrínseca no dia-a-dia representado em diversas poesias. Há bares, mulheres, orquestras, cinema, carnaval. Sobra espaço também para o autor questionar a sua própria profissão, se ele deveria ter seguido o desejo de seu pai ou não. Por fim, ele traz o amor junto da morte, completa de sentimentalismo.

    Aquele morreu amando.
    Nem sentiu chegar a morte
    quando à vida se abraçava
    nem a morte o castigou.
    Enquanto beijava o amor
    a morte o foi transportando
    nos braços do amor gozoso
    sem desatar-se a cadeia
    de vida enganchada em vida.

    (…)

    Que sabe a morte do abraço
    paralisado na luz
    do quarto aberto ao amor
    e defeso a tudo mais?
    E se continua vivo
    e mais do que vivo amando
    sem paredes e sem ossos
    nos vazios espaciais,
    não sei como, não sei quem?

    (Morto Vivendo, p. 316)

    Se ler um poema de Drummond é uma grande descoberta. Um livro todo propõe ao leitor muitos novos significados, que caminham entre a vida do autor, a vida de cada um de nós e também uma representação de como o mundo é.

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    Leia mais sobre o autor:

    A Rosa do Povo (Carlos Drummond de Andrade)

    A Bolsa e a Vida (Carlos Drummond de Andrade)

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