Jack Kerouac pode ter sido o principal nome da Geração Beat. Pode ter escrito as melhores obras e “On The Road” será sempre lembrado quando tocarmos no assunto. Mas ninguém chama mais minha atenção que William S. Burroughs. O mais velho entre os principais membros da literatura beat, pode se dizer que foi como um mentor para Kerouac e Allen Ginsberg. Um “pai”, anjo e demônio pelo qual se inspiravam para o bem e o mal. Seja pela sua forma de escrever, deixando fluir o pensamento, quanto pela maneira de encarar a vida como um trem descarrilhado, seguindo o fluxo, se deixando levar pelos caminhos e pelos prazeres (em todos os aspectos possíveis).

    junky-livroJunky (Companhia das Letras, 2013) não foi escrito com a técnica “cut-up” (com a qual ele ficou famoso, cortando frases e palavras, embaralhando-as e criando um novo texto), mas de certo modo, é redigido com uma escrita crua e direta. Sem tempo para reflexões ou argumentações. A versão de 1977 traz a introdução de Allen Ginsberg, contando um pouco sobre seu convívio com o “velho beat” e já dá uma breve noção de seu relacionamento com as drogas.

    Após ser apresentado como um “prólogo”, o livro segue o fluxo de uma escrita que parece te fazer ler em ritmo acelerado. Burroughs começa contando sua infância, época em que ainda vivia com seu pai “madeireiro” no Meio-Oeste dos Estados Unidos, e que relata ter sido muito perturbado por pesadelos e alucinações. Cita suas passagens por universidades até se encontrar no meio “hipster” nova-iorquino, onde se viu em um ambiente homossexual, recheado de novos jargões e gírias.

    Entre uma breve passagem pela Europa e seu retorno aos Estados Unidos, Burroughs conta ter sido rejeitado em três programas militares por seu porte físico. Neste período então, tem seus primeiros contatos com drogas pesadas (talvez a melhor tradução para o termo “Junky”, o qual ele utiliza o tempo todo no livro e que por alguns momentos ele deixa claro fazer relação especificamente com a heroína), e passa então, pela primeira vez na sua vida, a ter uma necessidade real por dinheiro, que segundo ele era até então desconhecida.

    “(…) Sempre se formula a mesma questão: por que um sujeito se torna viciado?
    A resposta é que em geral, ele não pretende se tornar viciado. Ninguém levanta de manhã e resolve se viciar. Demora pelo menos dois meses, com duas aplicações diárias, para se ficar realmente dependente. E ninguém sabe de fato o que é fissura por drogas pesadas até passar por vários períodos de dependência. Eu demorei quase quatro meses para ficar dependente pela primeira vez, e, mesmo então, os sintomas da privação da droga foram suaves. Não acho exagero afirmar que é preciso um ano e várias centenas de injeções para se produzir um verdadeiro viciado.” (pág. 12)

    À partir deste ponto, Burroughs narra suas diversas experiências com os mais diversificados tipos de drogas. Seu envolvimento com “Junky”, como ele costuma chamar, transformou sua personalidade e seu convívio. Passou a ser traficante, falsificador de receitas médicas para conseguir morfina (e outras drogas as quais só se consegue por meio de autorização), batedor de carteira de bebuns nos metrôs, entre outras atividades ilícitas para manter o vício.

    “(…) Droga pesada – junk – é uma equação celular que ensina ao usuário (junky) verdades de validade universal. Aprendi muito usando junk: vi a vida sendo medida em conta-gotas com solução de morfina. Senti a privação agônica da droga – a chamada “fissura” – e o alívio prazeroso quando as células sedentas de junk bebiam da agulha. É possível que todo prazer seja apenas alívio. Aprendi o estoicismo celular que uma droga ensina ao usuário. Vi uma cela repleta de junkies fissurados, silentes e imóveis em suas misérias estanques. Eles sabiam o quanto era inútil reclamar ou se mover. Sabiam que ninguém ali podia ajudar ninguém. Não há nenhum recurso, nenhum segredo que alguém possa te oferecer.” (pág 11)

    A obra é de fato uma viagem. Não como estamos acostumados nos relatos beat (embora haja muito deslocamento físico, entre cidades e países), mas a viagem que digo é a da mente de um viciado. Seu comportamento guiado pela necessidade de suprir o vício. Chegar a se convencer de que precisa parar ou irá morrer, e ter nisto a experiência de “quase morte” ao tentar; se sentir livre por um período, e acabar por cair novamente atraído pelo menor convite. E mesmo assim, sem demonstrar arrependimentos ou lamentos. Retratando assim de maneira clara e objetiva quem ele é. Um simples relato sem firulas ou rodeios de um velho “Junky”. Sem dúvidas o mais estranho e menos unânime de todos: William S. Burroughs.

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