“Às vezes eu penso que gostaria de ser uma moeda de uma libra esterlina em vez de uma menina africana. Todo mundo ficaria satisfeito ao me ver.” A comparação e o desejo incomum de ser um objeto essencialmente de valor, de ser não só a vera causa de grande parte da felicidade humana e de suas conquistas, mas também sinônimo de liberdade e segurança, em vez de um ser humano, passível de sofrimento e de desafios, obrigado a sentir e ser sobretudo racional, faz de Pequena Abelha uma narradora singular na literatura contemporânea, a começar por seu nome e por sua misteriosa história.

    Segundo romance do inglês Chris Cleave, Pequena Abelha (272 páginas, Editora Intrínseca, tradução de Maria Luiza Newlands) foi publicado originalmente no Reino Unido sob o título “The Other Hand”, ou “A Outra Mão”, e posteriormente nos Estados Unidos e Canadá como “Little Bee”. Ambos os títulos carregam um fardo diferente, seja de mistério, de curiosidade que apela ao leitor, ou simplesmente de causa. Por que uma menina africana se chama Pequena Abelha? Ou de quem é esta “outra mão”?

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    Suspense do início ao fim

    Como o próprio livro avisa em sua quarta capa (com boa dose de marketing), trata-se de uma história especial, que não pode ser contada num breve resumo, nem explicada em detalhes, pois do contrário está ameaçada de perder o viço criativo de Cleave. Uma das maiores conquistas narrativas de “Pequena Abelha” está no suspense que se transporta de um capítulo para outro, embaraçando potencialmente o enredo, deixando perguntas sem respostas e lentamente dilacerando algumas dúvidas com choques inesperados e autoexplicativos.

    Pequena Abelha, na principal ponta da frágil linha que forma o romance, é uma refugiada nigeriana que aprende o inglês falado na Inglaterra após passar dois anos num centro de detenção de imigrantes em Essex. Começa sua narração com a comparação da moeda e flui dela para o que realmente importa: o porquê de estar ali e quem quer encontrar ao sair do centro com outras três refugiadas tão incertas quanto seus destinos.

    Na outra ponta está Sarah Summers, segunda narradora que intercala os capítulos com a menina africana de 16 anos, e que como executiva bem-sucedida, diretora de uma revista feminina, não indica, aparentemente, como a linha pela qual estão unidas pode enrolar-se ou formar um nó.

    A primeira se acha solitária, se vê como um ser híbrido que ninguém gostaria de encontrar na calçada, que não se parece com uma inglesa e tampouco fala como uma nigeriana. A segunda, também solitária, mesmo com um marido, um amante e um filho de quatro anos que não tira sua fantasia de Batman, se vê, por pouco tempo, como alguém confiante; logo seu mundo desmorona com um telefonema de Pequena Abelha do centro de detenção, e com ele desmoronam seus conhecidos, esfarela-se seu passado e ressurge o sentimento de culpa e de abandono que a atormentara dois anos antes.

    Narrativa que une e separa

    O movimento da linha entre as personagens logo se dá, ondula incompto como um sopro em água escura e profunda, e o que é lembrança rola na superfície das cicatrizes tentando rompê-las mais uma vez.

    A voz narrativa de Pequena Abelha é cúmplice de seu próprio relato, é intrometida no sentido de que suas pausas são direcionadas a nós, leitores, fazendo-nos lembrar de que a história é “verdadeira” e que podemos, talvez, estar mais de ouvidos atentos do que de olhos abertos. Diferente da voz de Sarah, que se dá num tom mais formal, preocupado, às vezes histérico, a da personagem africana mistura sensações doloridas, silêncios pontuados de pequenas filosofias originais e até um pouco de humor.

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    O contraste num primeiro momento é natural, afinal são personagens diferentes fisicamente – enquanto uma é branca, europeia, vivendo na guarnecida classe média alta e se preocupa com a combinação de sua indumentária, a outra é negra, africana, pobre e faz planos suicidas a todo momento caso “os homens cheguem” – contando, cada uma do seu prisma, parte da mesma história, até o fatídico nó da linha em que se sustentam como funâmbulas arrasadas pelo acaso. Mas aos poucos somos apresentados a uma realidade mais detalhada de ambas as vidas. Pequena Abelha separa seu mundo do mundo europeu num único parágrafo com uma simples recordação de sua antiga vida na aldeia:

    O que é uma aventura? Depende de onde você sai. Menininhas em seu país se escondem no espaço entre a máquina de lavar roupa e a geladeira e fazem de conta que estão na selva, com cobras verdes e macacos ao redor. Minha irmã e eu costumávamos nos esconder num espaço na selva, com cobras verdes e macacos ao redor, e fingir que tínhamos uma máquina de lavar roupa e uma geladeira. Vocês vivem num mundo de máquinas e sonham com o que tem carne e osso. Nós sonhamos com máquinas porque vemos o que os que têm carne e osso fazem conosco.

    É certeiro como a trágica verdade por trás de pessoas como Pequena Abelha, perseguidas e mortas por companhias de petróleo cuja ambição e loucura ultrapassam o bom senso e os direitos humanos.

    Sarah atravessa seu trecho britânico de narrativa tão bem estruturada quanto de Pequena Abelha, mais voltada para a própria dor e dúvidas internas. Não tem o mesmo caráter maroto da jovem, pela qual, ao longo do romance e das explicações, nutre um amor puro, livre de julgamentos, a partir do assustador dia em que se conheceram numa praia africana.

    Outro grande trunfo de Chris Cleave: saber aliar duas vozes emocionalmente perturbadas, mas precisamente heterogêneas, com pesos compartilhados entre si, sutilezas a flutuar no enredo como uma prova de coragem e de desejo pela vida. Pois a despeito da atmosfera dolorida em que o romance se passa, da trágica história que une as personagens, do tempo tão presente e dos flashbacks que só fazem explicá-lo e o por quê de entregarmo-nos a um desconhecido visceral, são histórias de força, de superação, que saem de seu frágil casulo para a liberdade de um voo incontornável e perigosamente bom.

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