Livro de estreia do carioca Geovani Martins, “O sol na cabeça” reúne 13 contos do denominado realismo urbano. Publicado em oito países e com seus direitos vendidos para uma adaptação cinematográfica antes mesmo de sua publicação brasileira (em março), o autor, ao longo de 119 páginas, brinca com a língua, lança mão da oralidade e das gírias e lida com a desigualdade com a naturalidade que só vem de alguém com lugar de fala.

    O que pouco se fala é que, diferente das outras favelas, o abismo que marca a fronteira entre o morro e o asfalto na Zona Sul é muito mais profundo. É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar a valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente para um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornaram os muros.” (p. 18)

    O sol na cabeça

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    Geovani não apresenta o seu mundo ao leitor, ele não nos leva pela mão e não explica de forma professoral a vida daqueles cuja história ele conta. A droga existe, sem questionamentos, sem falso moralismo, sem fingimento; a violência é cotidiana e não precisa e nem pode ser apagada; o racismo é real, diário, limitador e acontece sem que ele precise explicar a cor de seus personagens, é perceptível pela movimentação estranha quando o menino passa, pelo medo que ele vê refletido no rosto daqueles com quem cruza pelo caminho. Geovani supõe – ou parece supor – que o leitor viva aquela realidade, ou leia notícias (e não necessariamente aquelas que circulam por nossa tão parcial mídia tradicional), que saia do conforto de sua bolha e que entenda que o Rio de Janeiro e o Brasil são muito, muito mais do que uma vivência particular, uma história única, uma vida baseada em méritos que são facilitados por diversos privilégios.

    Chegam sem entender o que está acontecendo, se informam do motivo da aglomeração, e então são envolvidas pela rua e a sua incrível capacidade de transformar pessoas comuns, que amam e choram, que sentem fome e saudade, em algo completamente diferente, numa unidade capaz de ir além dos limites de cada um dos indivíduos reunidos, que não se incomoda em ver o sangue escorrendo pela roupa do objeto atingido, se isso satisfazer a sua noção de justiça no momento exato do choque. Era mais uma vez a sede de fazer justiça contra o desconhecido, como sempre foi, desde o início dos tempos.” (p. 54)

    A favela não é uma entidade, aquele lugar genérico das novelas, que, independente do nome que recebe e da cidade em que se encontra, não muda e é habitada pelas mesmas pessoas que falam a mesma língua e gostam das mesmas coisas. “A favela” aqui, são muitas, seus habitantes, assim como os de todos os outros lugares, como nós, têm características diferentes, qualidades e defeitos, amam e odeiam, sentem medo, vergonha, raiva e indignação; que diariamente são condenadas e diminuídas pela cor da pele, roupas, endereço, que, talvez, estejam longe, tão longe, que deixam de ser vistos; gente que precisa virar adulto cedo, gente que, apesar de exposta a tanta violência, é só criança, gente que estuda, gente que rabisca, gente que a polícia não protege, mas mata só por ousar ser gente, gente que, mesmo jogada pelos cantos, pelos ônibus e pelos morros das nossas cidades, são gente, são a gente, a nossa gente.

    Não acho que “O sol na cabeça” estará na minha tradicional lista de melhores leituras do ano. Na verdade, sempre penso que é bem difícil amar um livro de contos em sua totalidade. Mas também não acredito que ele será um daqueles livros que, após alguns meses, eu esqueço que li, daqueles que passam batido e viram só mais um número em algum dos meus cadernos de anotação. Eu realmente gosto bastante da grande parte dos contos, adoro a forma como o autor nos conduz até a quebra da expectativa, até aqueles momentos em que o  grande acontecimento é aquilo que não acontece e aos vários finais sem fim, onde as possibilidades pertencem ao leitor e à sua imaginação. No mais, aguardo ansiosamente o romance que Geovani já vendeu, mas que – dizem – nem começou a escrever.

    Imagem: Cultura/Estadão

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