Publicado em junho deste ano (2018) pela Quadrinhos na Cia (com tradução de Kristin Lie Garrubo), A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado é uma HQ escrita e ilustrada por Liv Strömquist; que nasceu em 1978 no sul da Suécia, estudou ciência política, publica regularmente na Galago Magazine e direciona seu trabalho para questões sociais, tratando de assuntos como o feminismo e as relações de poder e injustiça.

    A Origem do Mundo. Uma História Cultural da Vagina
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    De forma bem humorada, mas com algumas pitadas de irritação e sarcasmo, Liv faz do quadrinho uma aula, uma espécie de manifesto, na qual ilustra um panorama de teorias e mitos que direcionaram a forma como nós – enquanto sociedade – lidamos com aquilo que se costuma chamar “genitália feminina” e que, consequentemente, refletem no tratamento das mulheres. Ela fala muito do que já conhecemos, vivemos, ouvimos, lemos ou nos lembramos vagamente de ter visto em algum lugar, mas o faz de forma embasada, citando fontes, livros e estudos, nos mostrando as mais diversas tentativas daquilo que ela mesma classifica como “colonização dos corpos femininos”.

    Os segmentos: passagens teóricas, notícias, reproduções de obras de arte…

    Com um estrutura um pouco diferente, combinando passagens de livros teóricos, diversas vozes, colagens de notícias e reproduções de obras de arte, o quadrinho é dividido por segmentos, onde a autora trata dos mais diversos assuntos que envolvem a vulva. Ela começa enumerando alguns homens que, utilizando de suas vozes, influências e trabalhos, se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar “genitália feminina”; como Harvey Kellog, que, além de pai dos sucrilhos, tinha como missão de vida impedir que as mulheres se masturbassem, recomendando, como forma de conter uma certa excitação “anormal”, o uso de ácido carbólico.

    Além disso, Liv traça um paralelo entre a noção da genitália feminina com um espaço vazio, como falta, como algo a ser preenchido, como algo construído em relação ao masculino, com letras de músicas, e, consequentemente, a forma como a sociedade vê e trata o sexo como apenas penetração e com a maneira binária e heteronormativa como a cultura – assim como a ciência, a arte e os livros de biologia – ocupa-se dos os órgãos sexuais.

    Um passeio histórico

    A autora faz, ainda, uma espécie de passeio histórico; nos apresenta a vulva enquanto parte importante do culto à Deméter, mostra sua interpretação em gravuras com cerca de 30 mil anos como algo sagrado, como parte do espiritual, conta como, antes do iluminismo, o prazer feminino e o orgasmo, eram considerados fundamentais para que uma mulher engravidasse, e como, com as mudanças vindas com o século XVIII, a sexualidade se tornou a área perfeita para projetar ideias sobre as diferenças entre homens e mulheres.

    A partir daí o clítoris deixa de aparecer na literatura médica, o orgasmo feminino passa a ser visto como secundário, complicado e difícil de atingir e a menstruação é considerada um misto de bênção – um sinal de fertilidade – e motivo de vergonha, a indicação da impureza da mulher.

    Barbara Kruger, 1989.

    O debate sobre coisas que temos vergonha de falar

    Adrienne Rich em seu texto Quando da morte acordamos: a escrita como revisão* fala sobre a importância do “de olhar para trás, de ver com um novo olhar”, do revisitar enquanto “um ato de sobrevivência”, enquanto necessário para que “possamos entender as pressuposições em que estamos enraizadas”, para que possamos “conhecer a nós mesmas” e, apesar de o texto ser voltado para a escrita de mulheres, o caminho e os questionamentos propostos por Liv, esse rever e repensar a história da vagina ou da vulva, esse debate sobre coisas que temos vergonha de falar, coisas que fazem parte de nós, nos tiram ou nos estimulam a sair de um lugar comum, nos ajudam a entender que vagina e vulva são coisas diferentes e que a linguagem e a ciência podem ser e de fato foram usadas durante muito tempo como forma de opressão, de não aceitação, e que o desencorajamento e as frustrações dessa nossa “cultura controlada por homens cria o problema da falta de contato da mulher com seu próprio eu” – seja ele físico ou intelectual.

    Nas quase 150 páginas onde mistura informação, aborrecimentos, piadas e ilustrações, a autora nos ajuda a perceber que, como diz Rich, “a política não é algo ‘lá fora’, mas algo ‘aqui dentro’ , ela é a essência da nossa condição”, e que a nossa maior arma contra o controle dos nossos corpos e mentes é o conhecimento.


    *O texto Quando da morte acordamos: a escrita como revisão encontra-se no livro Traduções da cultura – perspectiva críticas feministas (1970-2010), da editora Edufsc.

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