Em O melhor que podíamos fazer também conhecemos o Vietnã e a região pelas denúncias de turismo sexual, prática intensificada justamente pela guerra…

    As histórias em quadrinhos sempre fizeram parte da minha vida. Lembro-me, durante a infância, da minha ansiedade pelos almanaques da Turma da Mônica que minha mãe comprava de vez em quando. Depois, vieram as tirinhas da Mafalda, de quem sou fã até hoje, e, já na fase adulta, me deparei com HQs que me marcaram profundamente: Persépolis, da Marjani Satrapi; Maus, do Art Spiegelman; Desconstruindo Una, da Una; e O melhor que podíamos fazer, da Thi Bui.

    E é sobre este que quero falar um pouco nesta resenha. A graphic novel, como também pode ser chamada a obra, foi lançada no Brasil em 2017 pela editora Nemo com tradução de Fernando Scheibe e é fruto de mais de 12 anos de reflexões da cartunista vietnamita. Tudo começou em 2002, durante a sua pós-graduação em Educação Artística, quando ela quis reconstruir as memórias da sua família, que deixou o Vietnã do Sul após a sua queda na década de 1970 para se refugiar nos Estados Unidos. Como logo percebeu, essa busca trouxe à tona inúmeros fantasmas não exorcizados.

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    Porém, ao ter o seu filho em 2005, o contato – nada fácil – com a maternidade deu um novo impulso à escrita da HQ, já que as interrogações sobre a sua própria história familiar fragmentada pela guerra e pela fuga, os papéis de mães e filhas, os traumas do passado, a negligência do pai etc. ficaram mais intensas.

    O melhor que podíamos fazer
    Thi Bui

    Por isso, O melhor que podíamos fazer é um livro de várias camadas. Em um primeiro momento, parece tratar da história de um país marcado pela guerra e que só conhecemos a partir do ponto de vista dos EUA, especialmente por meio do cinema (posso citar alguns clássicos como Platoon, Apocalipse Now, Bom dia, Vietnã, entre tantos outros), ou seja, o foco é nos EUA mesmo quando o conflito não é sobre os EUA.

    Num segundo momento, também conhecemos o Vietnã e a região pelas denúncias de turismo sexual, prática intensificada justamente pela guerra… Pouco sabemos de sua história e cultura pelo olhar do próprio povo e, nesse sentido, em um exercício de micro-história que traz experiências pessoais em um contexto histórico mais amplo, a HQ de Thi Bui já presta um enorme serviço ao colocar o Vietnã na narrativa, mas com pessoas normais, que não são nem vilãs nem heroínas. Isso é muito importante quando pensamos na própria escrita da História, especialmente em contextos de conflitos, quando o maniqueísmo toma conta e só enxergamos bons versus maus, vencedores versus vencidos (como se em uma guerra alguém ganhasse).

    Todas as guerras são travadas duas vezes, uma vez no campo de batalha; na segunda vez, na memória. (Viet Thanh Nguyen)

    A história familiar de Thi Bui

    Mas há outra camada não menos importante, que é a história familiar da autora. E nesse ponto a leitura da HQ ganha poder e complexidade, pois ficamos diante de questões que atingem a todos de alguma forma: as relações familiares. Quantos de nós têm uma família perfeita, ou, pelo menos, normal? O que pode ser definido como amor paternal, maternal, fraternal?

    Thi Bui se debate, de forma direta ou não, com todos esses dilemas enquanto passa do papel de filha para o de mãe e, também, ao buscar entender os fantasmas dos seus pais.

    Não é um processo fácil e vemos, de um lado, a dificuldade da mãe em externalizar sua história e, do outro, uma narrativa pronta do pai, que parece ter criado uma história pessoal e se agarrado a ela para não se despedaçar.

    Ao terminar a HQ, me peguei pensando sobre como nós lidamos com os nossos fantasmas, como as famílias – avós, pais, tios etc. – também carregam pesos ao longo de gerações, perpetuando dores, violências, abusos…

    Uma HQ permite transcender barreiras até linguísticas

    E aqui cabem algumas palavras sobre a feliz escolha da autora em fazer uma HQ. Iniciei o texto dizendo que elas sempre fizeram parte da minha vida, mas apenas recentemente parei de vê-las como uma literatura menor. Uma HQ permite transcender barreiras até linguísticas, já que as imagens podem tocar pessoas de diferentes culturas e idiomas, e atingir vários públicos de uma forma mais sutil, mesmo quando o tema abordado é sério e profundo. Nesse aspecto, O melhor que podíamos fazer é um trabalho primoroso e que surpreende pela delicadeza e cuidado da escritora em colocar em memórias gráficas toda a sua complexa e dolorosa história. Essa escolha, como a própria Thi Bui explica, é um ato de resistência:

    Eu gosto da baixa reputação que os quadrinhos têm. Não é diferente da experiência de ser subestimada porque sou uma mulher, uma minoria, uma pessoa baixa ou pareço mais jovem do que a minha idade. Eu gosto da doce vingança de pessoas surpreendentes. Eu tenho que [gostar], ou então eu iria sentir raiva o tempo todo. (Thi Bui, em entrevista concedida em 2017 – tradução livre)

    No final, em um momento onde refugiados são vistos mais como ameaças do que como seres humanos e que nos debatemos sobre a falência do modelo familiar tradicional, ou seja, enquanto tentamos lidar com fantasmas internos e externos, Thi Bui mostra, com sutileza, que às vezes é o melhor que podemos fazer.

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