O Processo é um livro sobre um homem, Joseph K., que um dia se vê como réu de um processo. Por mais que procure informações, é impossível para ele saber algo sobre a acusação a que foi submetido. Descrito como uma leitura claustrofóbica e labiríntica, este livro é um ícone da burocracia na sociedade e uma história sobre o absurdo da existência humana.

    Obra inacabada, O Processo foi escrito aos poucos, com intervalos entre os períodos de construção da história. Quando entregou os escritos para seu amigo Max Brod, em 1920, o livro não estava terminado.

    Quando lançado pela primeira vez, em 1925, os capítulos foram organizados por Brod. Existem lacunas na história, algo que em outros livros de Kafka, como A Metamorfose, não aparecem. Talvez por isso a relação de K. com as mulheres tenha ficado um pouco solta neste livro.

    O objetivo deste texto não é desmerecer a obra de Kafka. Nem dizer que o livro é ruim, nada disso. Este texto é sobre uma experiência de leitura, a minha, no caso.

    Joseph K. e as mulheres

    Joseph K. é um homem privilegiado. Solteiro, bancário, estudado, mora em uma pousada. A dona do lugar, Frau Grubach, limpa seu quarto, lava suas roupas e prepara sua comida. Por vezes, é difícil simpatizar com K.; por vezes, me perguntei, durante a leitura, se o momento em que chegaram os oficiais em seu quarto naquela manhã seria a primeira ocasião em que ele fora contrariado na vida.

    Quando terminei a leitura do primeiro capítulo, a pouca consideração que consegui arrecadar nas primeiras páginas se desfez: K. assediou Fräulen Bürstner, sua vizinha na pensão onde morava. Depois do acontecido, na história, a garota não quis mais falar com ele e, diante da sua insistência, não apenas resolveu levar uma colega para morar com ela, como também a enviou para conversar com o agressor e pedir para que ele não a procurasse mais.

    Apesar de minha indignação, persisti na leitura. E cada vez que ele se questionava sobre o motivo do processo, pensava comigo: bem que seu crime poderia ser um assédio, já que ele sequer se deu conta de que fez mal a sua vizinha quando a beijou à força.

    É claro que, para um livro escrito no início do século XX, por um homem como Kafka, é pouco provável que seja essa a mensagem da obra. O fato é que, como leitora, senti esse desconforto: o personagem principal não me inspira um sentimento de solidariedade, embora eu tenha consciência da injustiça que ele está passando. Não aprovo nem senti algo bom ao ver seu destino, nada disso. A questão é que fiquei incomodada tanto pela injustiça de que K. foi vítima quanto por sua personalidade e sua postura em relação às mulheres.

    No livro, o assédio de Fräulen Bürstner não é a única ocasião em que uma mulher fica em uma situação complicada, uma expressão eufemística, diga-se de passagem. A mulher do oficial de justiça surge fazendo sexo com um estudante no meio da audiência em uma relação não consensual, segundo o que ela mesma disse mais tarde. Durante esse diálogo de K. com ela, a mulher chega a se oferecer para ele meio pedindo ajuda, meio dando em cima dele. Estranho, como quase tudo no livro.

    A enfermeira do advogado de K., chamada Leni, também acaba se envolvendo com ele. Ela se relaciona com o bancário e depois a gente descobre que K. não é o único. Ele sente ciúmes quando encontra um comerciante por lá, mas parece se conformar. Leni mora com o velho, de quem cuida, e parece que o senhor acamado também tem relações com a enfermeira. É uma situação, no mínimo, degradante. Você não acha isso absurdo?

    O Processo
    Cena do Filme “O Processo”, dirigido por Orson Welles (1962).

    O assédio invisível

    Terminada a leitura, passei a procurar resenhas sobre o livro e encontrei apenas um vídeo em que há um registro sobre o assédio cometido por K.

    O tema do romance não é a condição das mulheres no início do século XX, de fato. No entanto, precisamos pensar sobre o que é considerado absurdo na história e o que passa batido, o que é entendido como banal e sem importância e o que serve de base para uma discussão da sociedade em que vivemos. Um homem privilegiado ser acusado de um crime desconhecido, o clima claustrofóbico, os labirintos dos cartórios, a onipresença da Justiça, todos esses elementos são notáveis, não questiono isso. O que me espanta é a situação das mulheres – que é tão absurda quanto – desaparecer da maioria das interpretações.

    Sartre disse que O Processo acabou representando a perseguição dos judeus durante a II Guerra Mundial. Deleuse falou sobre como o livro pode ser compreendido como uma representação prévia da sociedade de controle em que vivemos. São análises interessantíssimas.

    Pena que as leituras de um dos principais romances da literatura universal deixam de citam as mulheres da história. Especialmente estas três de quem falei neste humilde texto.

    Talvez se Kafka tivesse concluído sua escrita, essas pontas soltas não aparecessem. E aqui me pergunto: o que ele quis fazer ao introduzir essas personagens?

    Apenas em um vídeo, do canal da Gisele Eberspächer, percebi certo desconforto dela em relação ao protagonista: “Ele é um porre”, disse. Concordo plenamente. Alisson, seu marido, que gravou o vídeo junto com ela, comenta brevemente sobre o assédio cometido por K. e também sobre a relação sexual da esposa do oficial de justiça com o estudante. Para ele, “aparentemente” foi assédio, mas é “discutível”.

    Muitas coisas são discutíveis em uma obra literária. Ainda mais em um clássico. Agora percebo que muitas coisas são também invisíveis…

    Um ponto cego?

    Depois de assistir ao vídeo de Gisele e matutar por uns dias, fiquei intrigada. Mas será possível? Resolvi reler os capítulos em questão. Será que é tudo isso que eu pensei?

    Apenas confirmei minha tese: foi assédio. E, nesta segunda leitura, percebi, ainda, uma certa ironia (?) do autor. Depois de beijar a vizinha à força, Joseph K. volta para seu quarto e se sente preocupado, pois tem medo de que o oficial que dorme na sala contígua possa fazer algum mal à Senhorita Bürstner:

    “K. não demorou a se deitar. Adormeceu quase imediatamente, mas antes refletiu um pouco sobre seu comportamento; sentia-se satisfeito com ele, mas surpreendia-se de não estar mais. A presença do capitão deixava-o seriamente preocupado com Fräulen Bürstner” (p. 28).

    K. não apenas é assediador, como também, da mesma forma que muitos dos assediadores, é incapaz de se dar conta da violência que ele mesmo comete. Isso parece absurdo para você? Será que Kafka foi irônico nesse trecho?

    Será que Kafka pretendia criar um arco mais fechadinho em relação às mulheres que aparecem na história? Qual é a função da situação dessas três mulheres na narrativa?

    Para Gisele e Alisson, pode ser que a intenção fosse tornar K. um personagem antipático, uma espécie de anti-herói. Assim, mesmo sendo ele uma péssima pessoa, temos que admitir que foi injustiçado. Você pode até não gostar de alguém, só que isso não anula os sofrimentos pelos quais esse indivíduo passou, não te impede de sentir empatia por ele.

    O fato de ter encontrado apenas uma menção ao assédio de K. em resenhas deste livro me fez pensar sobre o condicionamento que existe em nós quando lemos um clássico como O Processo: estamos sendo leitores livres ou apenas confirmando uma interpretação dada por especialistas sobre a história?

    Isso deve ser muito comum em obras tradicionais: já ouvimos falar tanto sobre elas que a leitura se torna viciada, e a interpretação, limitada. Sei que o tema da obra não é a questão do assédio sexual, no entanto, não posso deixar de notar esse fato, pois ele já é parte de minha experiência de leitura e – por que não? – de minha interpretação.

    E você também achou K. um chato ou pensa que ele é uma pessoa de bem? O assédio passou batido em sua leitura ou também te deixou impactado(a)? Vamos trocar ideias!

    Leia a resenha: O processo

    Share.