A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto foram dois dos acontecimentos mais estudados pela História e, ainda hoje, é difícil compreender o que levou à tamanha barbárie e desumanidade. Várias vertentes artísticas buscaram dar conta dessa compreensão, como na literatura, no cinema (como não citar o clássico de 1993, A Lista de Schindler, de Steven Spielberg?) etc. Entre as biografias, também temos um campo fértil, com excelentes obras, como a biografia de Hitler, escrita por Joachim Fest, a autobiografia de Winston Churchill, e o livro Mengele: a história completa do anjo da morte de Auschwitz, sobre a vida do médico nazista Josef Mengele (1911-1979).

    O livro, escrito por Gerald L. Posner e John Ware, foi publicado originalmente em 1986 e ganhou, recentemente, uma edição brasileira lançada pela Editora Cultrix, do Grupo Editorial Pensamento, com introdução de Michael Berenbaum, professor e ex-diretor presidente da Fundação de História Visual dos Sobreviventes do Holocausto. Mengele é considerada a obra definitiva a respeito do “anjo da morte”. É fruto de décadas de pesquisa e de acesso a fotografias e mais de 5 mil páginas de anotações particulares, cartas e diários de Mengele escritas entre 1945 e 1979, liberadas aos autores pelo único filho do médico, Rolf.

    Capa do livro. Editora Cultrix

    Mas quem foi Mengele? Este alemão foi chefe do serviço médico do famoso campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, entre 1943 e 1945 e usou cobaias humanas para seus experimentos pseudocientíficos, por meio dos quais buscava provar suas teses sobre a superioridade ariana e até mesmo aprimorá-la. Foram diversas crueldades cometidas em nome da “ciência” e da “ideologia nazista”, especialmente contra gêmeos, sua obsessão no campo de concentração, e contra as “vidas indignas de serem vividas”. Ao longo das primeiras páginas do livro, é possível acompanhar relatos da atuação do médico e o modo como ele participava – sem maiores dramas – das selektions, processo de seleção que decidia quem devia morrer e quem devia viver em Auschwitz. Estima-se que 400 mil almas – bebês, crianças pequenas, jovens garotas, mães, pais e avós – foram mandadas com descaso para as câmaras de gás após a seleção de Mengele.

    “Ele começou num cenário de rigor científico. Não era apenas médico, mas um cientista dedicado à pesquisa, um doutor em medicina e assim, mesmo em Auschwitz, comportou-se de acordo. Para aperfeiçoar a raça superior, estudou sobre gêmeos,  gêmeos ciganos e gêmeos judeus, para saber se a procriação do povo alemão poderia ser melhorada e se uma gravidez poderia gerar membros de raça superior. Estudou anões e outras anomalias – em seu modo de ver – para proteger o povo alemão e melhorar a espécie. E, enquanto conduzia seus experimentos, podia ser gentil e generoso com aqueles que eram espécimes para seu laboratório. Mas de uma hora para a outra podia virar-se contra eles, matá-los e torturá-los se assim o desejasse. Sonhava com o destaque acadêmico. Conseguiu notoriedade, ainda que como desonra. O nome Mengele é conhecido. Será lembrado.” (p. 13).

    Não é a à toa que o livro é conhecido como a biografia definitiva de Josef Mengele. É admirável como os autores se preocuparam em traçar – numa escrita digna dos melhores thrillers de ação –  todos os caminhos do médico, especialmente após a sua fuga na Alemanha para a América do Sul, onde ele viveu por décadas se escondendo na Argentina, Paraguai e Brasil, país que o abrigou até a morte, em 1979. Também vale ressaltar a forma como o jornalismo investigativo derrubou os mitos em torno dessa figura e não poupou críticas à família de Mengele, que manteve seu paradeiro oculto mesmo depois de sua morte, assim como aos governos alemão, israelense, norte-americano, paraguaio etc., que se perderam em meio à burocracia e ao desinteresse pela caçada ao médico, o que atrasou em décadas o seu encontro e um possível julgamento. A todo momento, a leitura nos leva a perguntar porque a justiça não foi feita, porque não foram realizados mais esforços para se punir não apenas Mengele, mas diversos outros nazistas que fugiram e continuaram suas vidas sem nunca terem pago pelos crimes cometidos. Talvez uma vida de fuga, solidão e privações tenha sido a punição de Mengele.

    Mas a pergunta que realmente fica é: como uma pessoa foi capaz de cometer tantas atrocidades? E, quando terminei a leitura, ao invés de encontrar o relato sobre um monstro transformado em médico, eu só consegui lembrar do livro do italiano Primo Levi, no qual ele relata suas experiências como sobrevivente de Auschwitz, livro este intitulado “É isto um homem?”. Bem, sim, Mengele era um homem, como tantos outros, cheio de ego, anseios, contradições; um homem que, ao invés de salvar vidas, optou por ignorar a humanidade de todas aquelas pessoas que chegavam em trens feito gado ao campo de extermínio.

    A biografia de Mengele nos lembra, infelizmente, que não precisa ser esse monstro que citei acima, mas apenas alguém que ignora a existência do outro, alguém que se vê moral e cientificamente acima do outro. Em tempos de ascensão do neofascismo em nosso país e no mundo, com o avanço de partidos de extrema-direita, e da ignorância que ainda permeia o conhecimento sobre nazismo, Holocausto e afins, leituras como essa são extremamente necessárias para nos lembrar do que a humanidade é capaz e daquilo que não podemos deixar que aconteça novamente. Essa é a justiça que podemos fazer por todas as vítimas de Mengele.

    Sobre os autores:

    Gerald Leo Posner (nascido em 20 de maio de 1954) é um jornalista investigativo americano e autor de renome internacional, tendo escrito Hitler’s Children, Case Closed: Lee Harvey Oswald and the Assassination of JFK (1993), Killing the Dream: James Earl Ray and the Assassination of Martin Luther King Jr. (1998), e o best-seller do New York Times God’s Bankers: A History of Money and Power at the Vatican. Em 2015, o Chicago Tribune o chamou de “investigador impiedoso como um pit bull“. Posner mora em Miami e está trabalhando em seu próximo livro sobre a indústria farmacêutica.

    John Ware é jornalista, escritor e repórter investigativo britânico. Foi repórter do programa de documentários sobre assuntos políticos Panorama, da BBC, de 1986 a 2012, apresentando também os programas Rough Justice, Taking Liberties e Inside Story. Antes disso, trabalhou no The Sun, em Belfast, de 1974 a 1977, e em seguida, como pesquisador, no programa World in Action, da Granada/ITV, tornando-se produtor em 1981. Ele escreveu para o Sunday Telegraph, o Guardian e para a revista Standpoint. Após sua saída voluntária da BBC em 2012, Ware continuou prestando serviços de freelancer à emissora. Atualmente ele reside na área norte de Londres.

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