A série Chernobyl, que estreou recentemente no canal HBO e conta com cinco episódios, tem recebido muitas críticas positivas e conquistado diversos fãs. A produção se baseia no desastre nuclear que aconteceu em Tchernóbil, na Ucrânia, em 26 de abril de 1986, uma tragédia que ainda é difícil de assimilar e, até por isso, continua assombrando.

    Se a história vem ganhando as telas, ela já esteve presente nas páginas de um livro, no caso, Vozes de Tchernóbil, escrito por Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2016, com tradução de Sonia Branco).

    Não é segredo para ninguém o quanto eu amo essa escritora, tanto que já fiz uma listinha de motivos para você ler suas obras (caso ainda não o tenha feito). Svetlana é conhecida por trazer registros de pessoas desconhecidas que participaram de momentos históricos, como no caso das mulheres russas que lutaram na Segunda Guerra Mundial, retratadas no livro A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, 2016)

    Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura em 2015

    Vozes de Tchernóbil eleva esses relatos, que trazem memórias, sonhos, paixões, frustrações, tragédias, e que a todo momento fazem a oposição entre a vida e a morte, o nascimento e a morte, o amor e a morte – elementos que talvez não sejam tão opostos como imaginamos. A autora buscou a profundidade dos relatos de pessoas comuns – viúvas, trabalhadores, cientistas, soldados – que em nada devem às histórias dos grandes heróis. O livro traz, assim, monólogos de vítimas invisíveis; são vozes solitárias que se unem em um mosaico chamado “Tchernóbil”.

    Sofrimento e suas linguagens

    Svetlana levou quase vinte anos para escrever esse livro. Mesmo diante da escrita dos sentimentos e pensamentos cotidianos, o que se vê é uma grande história da catástrofe: um sofrimento do povo nas décadas anteriores, causado pela guerra, e depois pela catástrofe nuclear, uma segunda guerra, como afirmou Zinaída, uma das testemunhas entrevistadas. Mais do que falar dos detalhes técnicos do desastre nuclear, a autora mostra como houve uma falta de entendimento das pessoas sobre a radiação e sobre o próprio acidente. E isso nos leva a pensar o que nós mesmos sabemos sobre energia nuclear, quais os benefícios e riscos, como ela afeta o meio ambiente etc.

    É interessante notar, pela análise dos depoimentos, o quanto a linguagem da guerra está presente em diversos momentos da leitura e na própria compreensão do que aconteceu, seja no modo como o acidente foi tratado (e omitido) pelas autoridades soviéticas, seja no modo como o povo se comportou. Há também a questão da masculinidade e do que se espera de um homem diante de uma situação como essa: ele precisa ter coragem, ir para a “guerra” (no caso de Tchernóbil, contra quem ou contra o quê?), precisa servir à Pátria. Não à toa que muitos homens se voluntariaram e morreram tentando reparar a usina. Quanto às mulheres, elas ainda permanecem no papel de cuidadoras e, em vários relatos, surgem a culpa cristã e a culpa feminina durante as gravidezes, já que as gestações foram dificultadas ou até impedidas por alterações biológicas ocasionadas pela radiação.

    Como historiadora, também me chamou a atenção especialmente a constante luta entre o lembrar e o esquecer, presente nos depoimentos. O governo queria calar os relatos, tanto no momento da tragédia quanto nos dias atuais (o livro é proibido na Bielorrússia). Entretanto, os próprios entrevistados vivem na incerteza entre lembrar e falar ou não. Há uma dor latente na maioria dos textos, uma dor até anterior ao próprio acidente nuclear. O que temos são histórias de sofrimentos históricos que marcaram a antiga URSS: as privações do Gulag, o cerco de Leningrado na Segunda Guerra Mundial, a fome, os assassinatos em massa durante o stalinismo…

    “Se você olhar em toda a nossa história, tanto soviética quanto pós-soviética, ela é uma enorme vala comum e um banho de sangue. Um eterno diálogo entre executores e vítimas. As malditas perguntas russas: o que deve ser feito e quem é o culpado. A revolução, os gulags, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Afeganistão escondida do povo, a queda do grande império, a queda da terra socialista gigante, a utopia terrestre e agora um desafio de dimensões cósmicas – Chernobyl. Este é um desafio para todas as coisas vivas na terra. Essa é a nossa história. E este é o tema de meus livros, este é o meu caminho, meus círculos do inferno, de homem para homem.” (Svetlana Aleksiévitch)

    Outro ponto digno de nota é a íntima ligação das pessoas com a terra: é nela que estão a vida e a morte, onde estão os familiares sepultados, a história de suas vidas. A explosão matou diretamente pela radiação e indiretamente por causa do sofrimento causado pela evacuação, pela perda de raízes, pela depressão que ceifou aqueles e aquelas que não suportaram tamanha mudança. Algo que me fez me apaixonar pela escrita da Svetlana é essa sua sensibilidade para trazer à tona assuntos que não ocupam as páginas dos livros de História: a relação com a natureza, os vínculos com os animais, os cheiros, tudo aquilo que é visceral, humano. Esse olhar cuidadoso da escritora já estava presente em A guerra não tem rosto de mulher, mas em Vozes de Tchernóbil é ainda mais marcante!

    Tchernóbil: a natureza e a tragédia

     Tchernóbil: o velho e o novo

    Essa catástrofe é desesperadora também pela sua novidade, com efeitos desconhecidos. O mundo, até então, se explicava pela guerra; os inimigos eram corpóreos, havia bombas, fogo, sons. Mas como lutar contra algo invisível e que mesmo assim matava? Como explicar o impacto na natureza se a vida renascia nos bosques, nos rios, apesar da tragédia? Como justificar o abandono da casa, da família, dos animais?

    A catástrofe é coletiva e individual. Coletiva no sentido governamental, pois demonstrou as falhas do governo soviético em gerenciar a crise – optou por ocultar informações para não gerar “pânico” -, o que acelerou a desintegração da URSS sob o regime de Gorbatchov e a perestroika. E, individual, pois colocou em xeque as crenças do “homem soviético”, que estava sempre disposto a abrir mão de sua individualidade e liberdade em nome do dever e da luta comunista. Há uma destruição da identidade soviética e a construção de uma nova: o povo de Tchernóbil. As pessoas de lá se tornaram anormais, diferentes para o mundo. São um estigma, um caso para a ciência – e, agora, para o turismo.

    Além disso, livro nos mostra os riscos na crença absoluta, seja em um sistema político, seja na técnica, na ciência, na economia etc. A destruição causada por essas crenças teve e tem impactos na vida humana e na vida de todos os outros seres vivos. Os relatos evidenciam esse retorno à natureza, sempre ignorada, mas tão necessária. É só lembrarmos de outras tragédias, como em Fukushima (2011), Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Além da destruição em si, que não será reparada no tempo humano, há o sofrimento e silenciamento das vítimas, humanas ou não, em nome do desenvolvimento.

    Vozes de Tchernóbil é, assim, uma aula de História e de humanidade, de como lidamos com o sofrimento e vida de um modo geral; é sobre o fim das utopias e também sobre recomeços, esperança, coragem. É um livro arrebatador, retrato dos nossos tempos.

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