Um mistério

    ­‌                  .Foi uma noite estranha. Não fazia nem frio, nem calor. Mas o vento soprava uma nota diferente. Quando me levantei e olhei pela janela, a rua estava mais escura que o comum. A lua não brilhava. Apenas no fim da rua, uma luz fraca contornava as árvores de um laranja fosco. A sensação que eu tinha era de um inevitável acontecimento.

    ­‌                  .Fechei a cortina e não tive mais coragem de olhar a rua. Tive dificuldade para dormir. Quando acordei, sabia que tinha sonhado mas não lembrava o que. Pela manhã, meu corpo cobrava a conta de uma noite mal dormida. Olhei pela janela e estava tudo normal: o silêncio de um vilarejo que ainda não despertou. Enquanto preparava meu café, a rua despertava lentamente. Um pouco de vozes e um pouco de ronco de motor. Tomei o meu café sentado na mesa com um olhar um tanto perdido. Não pensava em nada, mas algo me incomodava.

    ­‌                  .Saí pra minha caminhada de todas as manhãs. O vilarejo já estava todo desperto. Fiz o mesmo caminho de sempre, até chegar no lugar onde todos os caminhantes se encontravam. Estava cheio e todos seguiam para mesma direção. Optei pela contrária. Fiz o caminho quase todo sozinho. As pessoas que cruzavam por mim pareciam ter pressa e murmuravam alguma coisa que não entendia. Também não me preocupei muito com isso. Cheguei até o final da rua e já sentia calor. O caminho de volta do percurso era contra o vento que vinha do lado cinza do céu e esfriava o suor do corpo.

    ­‌                  .As pessoas passavam por mim com mais pressa ainda. Parecia que todos iam para uma mesma direção. Algum instinto fez eu diminuir a minha velocidade, como quando estamos nos aproximando de algo que não conhecemos. Definitivamente, acontecia alguma coisa. Havia um aglomerado de pessoas olhando para o mesmo lugar. Tinha uma estranha mistura de barulho e silêncio. Cheguei ao evento. As pessoas sussurravam umas para as outras. Pareciam temer falar em voz alta. Olhei ao redor e reconheci quase todos os rostos, mas não falei com ninguém. Aos poucos, fui adentrando a multidão até chegar ao centro das atenções.

    ­‌                  .Nunca tinha visto nada igual. Acho que só consigo descrever a cena, não a sensação. Havia algo pendurado na árvore, de ponta-cabeça. O que dava para perceber era que tinha uma cabeça humana, mas não se identificava o rosto. Parecia que algo fumê cobria a face daquilo que não sabíamos o que era. O corpo daquela cabeça estava todo coberto por uma camada preta. A minha primeira impressão foi que era um morcego gigante. Algumas pessoas ao meu redor falavam, baixinho, como se o contrário fosse um grave pecado, que aquilo era um vampiro. Hoje, refletindo sobre o caso, acho que era nosso cérebro tentando dar alguma razão para a cena e buscava alguma referência nas imagens possíveis da nossa memória. A verdade era que aquilo não tinha nome.

    ­‌                  .Depois de um tempo de observação quase muda, as pessoas começaram a falar normalmente, como se já estivessem acostumados com a figura desconhecida. Alguns mais atrevidos deram um passo em direção ao objeto. Quando perceberam que nada acontecia, todos deram o mesmo passo. Chegou um momento em que todo mundo estava tocando na criatura. Eu estava rodeando ela, mas não havia tocado ainda. Pra mim, parecia algo que não devíamos tocar porque ou era muito sagrado, ou era muito profano. As outras pessoas, talvez pelo mesmo motivo que não me deixava tocar, estavam tirando fotos. Um homem mais pragmático chamou a atenção e disse que o melhor seria que organizassem uma fila para que todos conseguissem tirar as fotos. Um mulher pró-ativa tomou a frente e começou fazer esse trabalho. Um jovem disse que não seria justo que a fila fosse igual para todos, que devia ter uma que, claro, desse preferência para os mais velhos. Assim, organizaram uma outra fila. Outro jovem, um pouco mais contundente que o primeiro, disse que o problema dessa organização era que não levava em consideração as famílias que estavam tirando fotos e, naturalmente, levava mais tempo. Ele propunha que estabelecesse um limite para o tempo que podia ficar ao lado da criatura.

    ­‌                  .Nessa altura, já havia chegado a polícia, os bombeiros, os jornalistas e até o representante do prefeito. Ao lado das filas, que já se passavam de dez, algumas senhoras vendiam bolo com café. Outros vendiam bebidas alcoólicas, mas escondido, por causa da presença da polícia. Os policiais diziam que não era permitido vender bebidas ali, por causa da família e das crianças, mas todos estavam com uma nas mãos.

    ­‌                  .Era quase noite e eu estava no mesmo lugar. Aquela presença estranha já era algo banal. Eu resolvi me aproximar mais uma vez, ainda sem tocar. Dei a volta naquele fruto estranho daquela árvore e o olhei por trás. Parecia que estava enrolado em um lençol de pele. Quando eu baixei a cabeça, deparei com um rosto que ainda não tinha visto ali. Eu fiquei paralisado. O olhar dela estava pregado na criatura pendurada. Seu rosto era um misto de tristeza e compaixão. Parecia que ela entendia aquele ser sem nome; aquele fruto proibido. Enquanto eu admirava aquele rosto – eternos segundos – algo aconteceu.

    ­‌                  .A criatura se mexeu. Todos ao redor perceberam e prenderam a respiração. O ar se condensou; podia sentir o seu peso sobre nós. De um só golpe a criatura abriu o que pareciam ser asas. Uns deram pulos para trás; outros correram, ou se jogaram no chão. A criatura parecia um anjo de asas abertas.

    ­‌                  .O que aconteceu a seguir foi rápido e confuso. Após abrir as asas, a criatura não fez mais nenhum movimento. Enquanto a simples presença, no primeiro momento, gerou curiosidade; agora, gerava tensão. As pessoas começaram a se organizar para tentar derrubar a criatura da árvore. Eles tinham fome daquele fruto. Surgiram com pedaço de pau, facas e até fogo. Gritavam que aquilo não era, nem podia ser coisa de Deus. Apesar dos xingamentos, ninguém tinha a coragem de dar o primeiro golpe. Ele é sempre o mais difícil, mas é o suficiente. E assim foi. As pessoas estavam em volta da criatura, em uma roda enorme. Alguém empurrou lá de trás e fez com que a pessoa da frente desse um passo na direção da criatura. Os outros entenderam que aquele jovem era o candidato para o primeiro golpe e começaram a gritar para que ele batesse. Ele ficou meio atordoado com a situação, mas fez o que lhe cabia fazer. Nos seus olhos, não me esqueço, parecia que pedia desculpas pelo golpe. Ele inclinou o corpo para trás e com muita força desferiu o primeiro e decisivo golpe na criatura. Houve um milésimo de silêncio, onde todos ficaram olhando esperando o resultado do golpe. A criatura continuou imóvel. Mas aquele golpe tinha autorizado os outros. A massa de pessoas se jogou na direção do ser desconhecido.

    ­‌                  .Eu tentava me afastar da multidão violenta. Aqueles olhares expressavam violência e prazer; alguns riam e urravam. Enquanto tentava me afastar, vi ao longe aquele mesmo rosto. Único. Ela tentava impedir que as pessoas avançassem para a criatura. Em vão. Eles eram mais fortes e queriam comer daquele fruto. De repente, ela parou e olhou para a criatura e chorou. No mesmo instante, conseguiram derrubá-lo da árvore. Em poucos minutos, a criatura estava coberta pelo fogo.

    ­‌                  .Eu não conseguia sequer olhar para a criatura. Eu estava preso naquele rosto que chorava. Existia uma beleza misteriosa naquele pranto. Ela assistia a tudo com tristeza, mas seu choro não era pela criatura. Nesse momento, eu também chorei. Sem entender porquê, nem como, eu fui até ela. Eu a olhei e vi que em seus olhos molhados pelo pranto havia mais que lágrimas. Abracei-a. Enquanto chorávamos abraçados, eu sentia o seu coração batendo.


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    Imagem da capa: Martin McCarthy for Beltane Fire Society

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