Na última quinta-feira (07/05), a atual secretária especial da Cultura, a atriz Regina Duarte, concedeu sua primeira entrevista desde que assumiu o cargo, em março deste ano. A entrevista, transmitida ao vivo no Programa CNN 360, deixou bastante evidente que a cultura, que nunca foi a namoradinha do Brasil, atualmente virou a bela, recatada e do lar! Me deu asco, mas ao mesmo tempo também uma sensação de pesar. Até parece que a cultura morreu no país, ou melhor, que foi assassinada! Felizmente, cultura não é só o que uma secretaria quer! Mas em um país que desde a sua fundação nunca valorizou a cultura, as recentes tentativas do governo em domesticá-la podem ser fatais.

    Infelizmente, este é só mais um exemplo daquilo que já virou o nosso cotidiano. Nos últimos dias, enfermeiras foram agredidas enquanto realizavam seu protesto – silencioso, diga-se de passagem – em memória dos e das colegas que já perderam a vida na linha de frente do combate ao Covid-19 no Brasil. Jornalistas foram mandados calar a boca pelo próprio Presidente da República, e outros profissionais da mídia foram agredidos por apoiadores de Bolsonaro durante uma manifestação antidemocrática, tudo isso em defesa de uma ideologia política nefasta que há muito privilegia a ditadura em detrimento da democracia, e que hoje em especial privilegia a economia em detrimento de vidas.

    Mas, afinal, como foi que chegamos a esse ponto? Será que o pior ainda está por vir? Há algum modo de sairmos desse atoleiro? E, talvez, o que mais nos deixe intrigados quando estamos diante de comportamentos como esses: por que as pessoas insistem em defender o indefensável? Para tentar responder a algumas dessas questões, eu recorri a pesquisas, conversas e reflexões. O resultado vocês podem ler a seguir.

    Dois pontos de partida: um histórico, outro biológico

    Yuval Noah Harari, doutor em História pela Universidade de Oxford, especializado em história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, em seu best seller Sapiens: Uma breve história da humanidade, afirma que todas as culturas são repletas de contradições internas, e que elas estão o tempo todo tentando conciliar essas contradições. Segundo o autor, toda a história política do mundo, a partir de 1789, pode ser vista como uma série de tentativas de superar a contradição entre os valores de igualdade e de liberdade que desde a Revolução Francesa são vistos como fundamentais por pessoas do mundo inteiro.

    No livro, ele aponta que essa capacidade de os indivíduos de uma sociedade terem crenças e valores contraditórios, a que chamamos de dissonância cognitiva, é característica essencial à construção e  à manutenção de qualquer cultura humana. Na visão do autor, para que possamos entender determinada cultura, não basta conhecermos o conjunto de valores em geral prezados por seus indivíduos, sendo necessário investigarmos “aqueles lugares em que as regras estão sendo combatidas e os padrões estão em disputa” (HARARI, 2019, p. 174).

    Um breve olhar sobre a dissonância cognitiva

    Em um breve resumo, a médica psiquiatra Camila Magalhães Silveira¹ explica que a dissonância cognitiva se consubstancia nas circunstâncias em que não há correspondência entre os elementos cognitivos (vulgarmente falando, o modo como pensamos) e a realidade. No caso, quando um comportamento praticado por um indivíduo é contrário a um valor ou a uma crença que ele possua, estamos diante de uma dissonância cognitiva.

    Na tentativa de solucionar a contradição apresentada, o cérebro pode se valer de duas diferentes estratégias: reconhecer que o comportamento é inadequado e lidar com o desconforto provocado pelo seu desvio praticado (pedir desculpas, por exemplo) ou buscar justificar o comportamento com o escopo de amenizar a sensação de culpa experimentada (“inventar uma desculpa”, por exemplo).

    Reconhecer o erro praticado é extremamente difícil, pois envolve questionar os conceitos que se tem de si mesmo, a imagem que se quer que os outros tenham de si e até mesmo a própria identidade. Por isso, muitas pessoas optam pelo caminho mais fácil, ou seja, elas preferem adaptar os seus valores aos comportamentos desviantes.

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    A curto prazo essa estratégia pode trazer uma sensação de alívio. Segundo a médica e pesquisadora, recusar-se a pedir desculpas fortalece momentaneamente a autoestima e dá ao indivíduo uma sensação de estar no controle. Mas a persistência na recusa em admitir o erro pode ser um indicativo de que a pessoa está menos aberta a críticas construtivas e a mudanças, podendo colocar em risco os vínculos de confiança e até aumentar os conflitos.

    No nível cerebral, as principais áreas mobilizadas pela dissonância cognitiva são a parte posterior do córtex frontal e a ínsula, que comandam as reações emocionais de sobrevivência, o que faz disso um relevante mecanismo adaptativo (que influencia na capacidade de resposta do indivíduo ao meio em que ele se encontra), que pode ser um importante auxiliar na autorreflexão para melhoria de nossas decisões futuras.

    Com isso, a pesquisadora conclui que resolver a dissonância de uma forma saudável envolve primeiro identificar o sentimento despertado por ela (confusão, estresse, constrangimento ou culpa) para depois reconhecer e questionar justificativas automáticas que nos vêm à cabeça nessas situações, privilegiando a honestidade e humildade como traços que nos tornam mais humanos e assumindo que não somos infalíveis e que assim como os demais indivíduos também somos passíveis de erro.

    O Brasil sob as lentes de Yuval Harari

    Transplantando as lentes de Yuval Harari para a cultura brasileira, podemos observar facilmente a antiga disputa global entre os padrões da igualdade e da liberdade a que se refere o autor em seu livro, muito bem ilustrada na nossa história política recente pela preponderância de um e de outro no discurso dos dois partidos políticos que desde a sua redemocratização até um passado recente vinham se alternando no poder no Brasil.

    Mais do que isso, graças ao acirramento da disputa entre essas duas narrativas nas últimas décadas, somando-se a isso as idiossincrasias do povo brasileiro, hoje conseguimos compreender melhor alguns dos principais traços de nossa cultura, antes escamoteados na figura do homem cordial, esse sujeito afável e caloroso nas aparências, mas cuja essência revela a misoginia e o racismo de toda uma nação.

    Cai a máscara do homem cordial

    Ironicamente, logo agora que o uso de máscaras é obrigatório em locais públicos por motivo de saúde pública, eis que cai a máscara do homem cordial. Com o crescente distanciamento entre os elementos cognitivos da coletividade e a realidade ao nosso redor, que decorre do acirramento da disputa de narrativas na nossa sociedade, o que costumamos chamar de polarização, tem ficado evidente a um número cada vez maior de pessoas a incompatibilidade entre os nossos comportamentos cotidianos e as crenças e valores que tanto prezamos.

    Diante desse impasse, a muito custo muitos de nós estão paulatinamente passando a reconhecer em si próprios o racismo, a misoginia e outros tantos preconceitos antes velados, esforço este louvável, mas que deve ser contínuo, e ainda, que representa apenas o primeiro passo de uma longa trilha que ainda teremos de percorrer na construção de um país verdadeiramente mais justo e menos desigual. Outros tantos, porém, ainda preferem seguir por outro caminho, e hoje se valem de artifícios para tecer um novo véu na vã tentativa de tornar a esconder a verdadeira face do homem cordial hoje exposta.

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    Talvez, aqui, valha uma pequena pausa para uma reflexão sobre um velho ditado, de origem portuguesa, mas bastante difundido em território nacional, o tal do “pra inglês ver”. A expressão se assenta na crença de que o outro efetivamente está sendo enganado. Ou seja, parte da premissa de subestimar a inteligência do outro. Afinal de contas, se não acreditássemos estar logrando êxito em enganar os ingleses à época da Lei Feijó², ditado mais verídico seria “para a gente achar que o inglês não está nos vendo”, não é mesmo?

    O que eu quero dizer com essa breve reflexão é que nossa subjetividade pode trair a nossa percepção, fazendo com que não vejamos as coisas como realmente são, mas sim como gostaríamos que elas fossem. Anteriormente eu mencionei um dado objetivo: os esforços daqueles que ainda tentam defender o indefensável são todos vãos. Isso não é o mesmo que dizer que os que tomaram esse caminho percebem as coisas dessa maneira.

    De um lado, se essas pessoas ainda persistem é porque elas acreditam que o esforço ainda vale a pena, mesmo que para quem está de fora já seja cada vez mais evidente que essa é uma batalha perdida. Por outro lado, se mesmo evidenciada a impossibilidade de vencer essa batalha, ainda assim há tantas pessoas relutando em aceitar isso objetivamente, é bastante provável que, na visão delas, elas tenham mais a perder com isso.

    As pessoas defendem o indefensável e a verdade refletida no espelho

    Um pequeno trecho de um texto do filósofo esloveno Slavoj Žižek, embora o texto em si trate de um outro assunto, ilustra muito bem o que estou querendo dizer, de modo que eu tomei a liberdade de citá-lo a seguir:

    “Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega a um precipício e continua caminhando, ignorando o fato de não haver chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e percebe o abismo. O que os manifestantes estão fazendo é apenas lembrar os que estão no poder de olhar para baixo”.

    Slavoj Žižek

    Aqueles que insistem em defender o indefensável hoje são esse gato (ou coiote) do desenho animado, que continua caminhando mesmo depois de ter chegado ao precipício. Para eles, olhar para baixo significa encarar a verdadeira face do homem cordial, a face do horror, e se aperceber do quão indisfarçável ela é, além de finalmente assumir a verdade que todos, exceto eles,  haviam aceitado já há muito tempo.

    Pode até ser que, em um primeiro momento, os ingleses tenham sido enganados pela lei feita com essa finalidade em 1831, e pode até ser que permaneceram assim por algum tempo, mas hoje não mais. Da mesma forma, pode até ser que por algum tempo a verdade sobre o homem cordial estivesse de algum modo invisível a todos, talvez encoberta por um véu qualquer de afabilidade e falsa simpatia, mas exceto por aqueles que ainda insistem nesse trabalho de Sísifo, hoje não mais.

    Mas se é assim, nós podemos nos perguntar agora: então por que, não importa o esforço que façamos para avisá-los, para pedir para que olhem para baixo, eles simplesmente não olham? A resposta é que, por mais difícil que possa parecer ser encarar o horror estampado na face do homem cordial, é extremamente mais difícil aceitar que, neste caso, o olhar para baixo, na verdade, é olhar para o espelho.


    Referências

    ¹ Episódio “Entenda o que é a dissonância cognitiva”, da coluna Saúde Mental & Bem Estar, apresentado pela Médica Psiquiátrica, doutora pela FMUSP, pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica e colunista da Jovem Pan. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0dmM13WtFUI. Acesso em: 6 maio 2020.

    ² Lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impunha penas aos importadores dos mesmos escravos, que ficou conhecida como “lei para inglês ver”. Texto original disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html. Acesso em: 8 maio 2020.

    ³ ŽIŽEK, Slavoj. O violento silêncio de um novo começo. In. HARLEY, David et al. Occuppy: Movimentos de protesto que tomaram as ruas (Coleção Tinta Vermelha). São Paulo: Boitempo Editorial, 2015. n.p.

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