Quem nunca fez aquela pergunta “e se…?” que atire a primeira pedra. Todos nós já nos questionamos sobre as escolhas que fizemos e sobre outros caminhos que nossas vidas teriam tomado se tivéssemos optado por outro curso na faculdade, aceito certo emprego, feito tal viagem, ter construído uma família e por aí vai. A cada momento, estamos fazendo escolhas, simples ou não, e que às vezes nos levam a profundos arrependimentos.

E se, de repente, fosse possível conhecer todas as possibilidades, todos os caminhos que se abririam a partir de determinada decisão?

É isso que vivencia Jason Dressen, protagonista do livro Matéria Escura, escrito por Blake Crouch e publicado no Brasil pela Intrínseca em 2017, com tradução de Alexandre Raposo. Professor de Física Quântica em uma faculdade mediana em Chicago, Jason é casado com Daniela, professora de Artes, e pai do adolescente Charlie. Tanto Jason quanto Daniela tinham futuros promissores: ele, como um físico renomado, um forte candidato ao Prêmio Paine; ela, como pintora. Ambos abdicam de suas profissões quando descobrem que Daniela está grávida. A escolha está feita: gestação, casamento, família, empregos que pagam as contas, uma vida simples e aparentemente feliz.

matéria escura

Em uma noite, após ir parabenizar Ryan, seu amigo que se tornou o físico premiado, Jason acaba sequestrado, levado para um hangar abandonado, e sedado. As últimas palavras que escuta são: “Você é feliz com a vida que tem?”. O professor acorda horas depois em um laboratório e em uma realidade completamente diferente. Nesta, Jason é (ou pelo menos acham que é) um importante e premiado cientista, responsável por criar um cubo que permite acessar o multiverso. Mas, neste mundo, ele não é casado com Daniela – que agora é uma pintora de sucesso –; Charlie sequer é nascido. Este mundo não é o seu lar. 

Em um thriller digno de cinema, a narrativa é repleta de suspense, reviravoltas, drama. Jason tenta, desesperadamente, voltar para a sua casa e, para isso, acessa o cubo, que cria um imenso corredor com incontáveis portas (o que me fez lembrar daquelas entradas em Matrix Reloaded). Por elas, o viajante pode acessar outros “universos”, gerando cadeias infinitas de consequências. Em uma porta, vemos uma Chicago tomada por cinzas em um mundo pós-apocalíptico; em outra, está enterrada em gelo; ainda em outra, a cidade está enfrentando uma praga terrível, com direito a toque de recolher e corpos espalhados pelas casas – impossível não achar uma triste coincidência com o cenário atual e pensar que, em alguma realidade alternativa, não há coronavírus, nem governos genocidas. Não custa especular.

“Pensei que apreciasse cada momento, mas sentado aqui, no frio, sei que não dava o devido valor. E como poderia ser diferente? Até tudo desabar, não fazemos ideia do que realmente temos, de como tudo se encaixa de maneira tão precária e tão perfeita.” (p. 440, versão Kindle)

Matéria Escura traz uma escrita complexa, já que a obra de ficção científica flerta com a física quântica, com a ideia de multiverso, com a teoria dos jogos etc. Devo confessar que foi uma das leituras mais doidas que já fiz na vida, só perdendo, certamente, para A Paixão da Nova Eva, da Angela Carter (1977). Para quem gosta de temas científicos, que já foram abordados especialmente pelo cinema e TV, em produções como Interestelar, Donnie Darko, Efeito Borboleta, The OA, Doutor Estranho, e por aí vai, o livro merece um espaço na lista de leituras.

E ainda que a construção dos personagens seja mediana – não vi muita profundidade nas figuras principais –, a obra incita questionamentos pertinentes. Existe uma vida completa, plena, ou sempre teremos que optar pela profissão ou pela família? O quanto nossas escolhas são equivocadas? E como e quanto a observação determina a realidade? Há multiverso no qual poderíamos existir de todas as formas? Afinal, nossa existência é real, única, ou apenas uma dentre possibilidades infinitas?

Embora eu consiga ver os outros no labirinto, é como se não estivéssemos no mesmo salão. Ou no mesmo espaço. Parecem estar todos em mundos separados, perdidos em seus próprios vetores. Por um momento fugaz, sou invadido por uma esmagadora sensação de perda. Não tristeza ou dor. Algo mais primal. Uma percepção e o horror que a sucede — o horror da ilimitada indiferença que nos rodeia. Não sei se essa é a intenção da instalação, mas é o que sinto. Estamos apenas vagando através da tundra de nossa existência, atribuindo valor ao inútil, quando tudo que amamos e odiamos, tudo em que acreditamos e pelo que lutamos, matamos e morremos é tão sem sentido quanto imagens projetadas sobre acrílico. (p. 169-170, versão Kindle)

Talvez a “moral da história” seja pensar sobre a perda daquilo que nos define, ou pensamos definir a nossa identidade, identidade esta que estamos construindo e desconstruindo todos os dias por meio de escolhas, que não afetam só a nós, mas a todos ao nosso redor. É uma ideia novamente relevante para os dias atuais, quando nos vemos com medo de perder nossas bases, que podem ser a família, o emprego, o círculo de amigos, os lugares que frequentamos. Importante também para mostrar que uma escolha individual tem, sim, impacto no coletivo. Então, se ainda não temos provas da existência do multiverso, nem de um cubo que poderia nos transportar por outros mundos onde teríamos outras vidas, só nos resta lidar com esta realidade, com a nossa versão, com as nossas decisões e arrependimentos.

Eis uma tarefa árdua que nem a física explica.  

Sobre o autor: Blake Crouch é roteirista e autor de diversos best-sellers. Seus livros já foram traduzidos para mais de trinta idiomas e venderam mais de um milhão de exemplares. Mora com a família no estado americano do Colorado. No Brasil, além de Matéria Escura, a Intrínseca lançou Recursão, em 2020. Pela Editora Planeta, foi publicado o livro Pines, em 2015, que deu origem à série Wayward Pines, da FOX.

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E ficou curiosa(o) para saber mais sobre a ideia de multiverso? Deixo aqui um vídeo que ajuda a explicar o assunto:

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