Quem decide escrever ficção vai se deparar, uma hora ou outra, com a jornada do herói.

    Na verdade, este arquétipo universal é tão popular que até áreas, como o marketing, têm se utilizado dele para pensar em como ampliar o consumo de produtos e serviços.

    A jornada do herói foi criada por Joseph Campbell, um mitologista estadunidense, a partir de seus estudos de religião comparada.

    O Herói de Mil Faces, livro escrito nos anos 1950, demonstra os resultados de uma ampla pesquisa de Campbell. Depois de conhecer e sistematizar vários mitos de diversas culturas e religiões, ele encontrou alguns padrões que se repetiam em várias histórias diferentes.

    Muito influenciado por Jung e Freud, Campbell criou a jornada do herói a partir da busca pelo que havia em comum em diferentes culturas. E, de fato, pode até ser bonito pensar nessa perspectiva universalizadora da mitologia humana. Principalmente se a gente não problematizar os apagamentos causados por essa forma de ver as coisas.

    A partir de um processo de identificação de padrões, Campbell contribuiu para a criação de um super arquétipo, que engloba vários outros arquétipos específicos. Nasce o herói universal.

    As ideias de Joseph Campbell se tornaram muito populares entre os roteiristas de Hollywood. O próprio George Lucas usou a jornada do herói como referência para a criação de Star Wars. Existem livros que esmiúçam a jornada do herói para escritores e a simplificam ainda mais.

    E até hoje é possível perceber a influência que o trabalho de Campbell trouxe para a ficção, principalmente na literatura dita comercial.

    Agora, a questão que podemos e devemos fazer é: qual é a relevância desse arquétipo universal do herói?

    Super arquétipo ou o herói genérico

    Arquétipos são imagens primordiais formadas a partir da experiência de cada indivíduo e que possuem uma estrutura semelhante quando observadas coletivamente.

    Dentro de uma cultura, a figura de um curandeiro, por exemplo, simboliza relações, crenças, posicionamentos e conflitos. Para cada indivíduo inserido nesta cultura, o curandeiro possui uma imagem particular. Ao sobrepor estas várias imagens particulares, encontramos um contorno comum, coletivo, que representa a figura do curandeiro. E esta figura comum, o arquétipo do curandeiro, sintetiza a forma como esta comunidade compreende e lida com questões da vida.

    Podemos pensar, então, nos arquétipos como figuras-forma que representam certas personas presentes na sociedade. Ao mesmo tempo, cada arquétipo pode indicar uma série de dilemas, questionamentos e reflexões de um grupo de indivíduos.

    Por isso, o arquétipo é tão poderoso para a ficção, porque ele dialoga com aspectos internos profundos do self e impacta a forma como vemos o mundo. Histórias transformam pessoas, sem dúvida. Ainda mais quando são construídas a partir de figuras-forma tão potentes.

    Mas, o que acontece quando várias imagens ricas e diversas, ou seja, vários arquétipos de culturas diferentes são padronizados por um homem branco para se criar, então, o arquétipo dos arquétipos, o herói universal?

    Para além do herói genérico

    A jornada do herói é um trabalho primoroso e muito importante para a produção cultural hoje, principalmente se a gente pensar no alcance que esse arquétipo do herói universal tem nos inúmeros livros, filmes e séries produzidos no mundo.

    Reconhecer a importancia do trabalho de Campbell não impede a reflexão sobre essa síntese toda necessária para criar o arquétipo dos arquétipos. Será que esse resumo simplifica e tira a profundidade de toda uma bagagem plural e rica da cultura humana?

    Em Mulheres que Correm com os Lobos, livro publicado em 1992 por Clarissa Pinkola Estés, psicóloga junguiana estadunidense, é possível observar a riqueza de alguns mitos ligados ao arquétipo da mulher selvagem.

    Este livro é essencial para escritores e escritoras que querem ir além de uma figura-forma criada a partir do crivo do homem branco hétero.

    Na obra de Clarissa, encontramos aspectos de uma jornada mais plural e diversa, que considera os dilemas e conflitos da outra, daquela que não é o herói padronizado.

    E mesmo a pesquisa encantadora de Estés carece de questionamentos. Existe uma mulher selvagem universal? Quais aspectos desse arquétipo ainda estão escondidos? O que ficou de fora da seleção de Clarissa?

    Fico cada vez mais interessada em mitologia, na busca por referências outras, por figuras-forma que representem jornadas diversas, com dilemas e contradições, dores e dúvidas que vão além da branquitude, da heteronormatividade, da classe capitalista dominante.

    Quais as mitologias da mulher não branca? Quais aspectos das figuras-forma da cultura africana, da cultura dos povos indígenas podem ecoar nos dilemas que enfrentamos hoje? Como trabalhar estas referências de forma respeitosa e profunda?

    Em última instância, muitas narrativas plurais, periféricas e populares foram sintetizadas e apagadas. Enquanto outras sequer puderam crescer e se desenvolver neste contexto de padronização. Quais são os arquétipos que mergulham nas minúcias da experiência LGBTQIA+?

    Jornada de quem?

    Tanto a jornada do herói quanto a mulher selvagem são sínteses que possuem raízes plenas de diversidade.

    Estes super arquétipos nasceram de uma base popular de construção de saberes. A partir da reflexão e da relação íntima com formas de vida que vão além do padrão homem, branco, hétero, alinhado ao capitalismo.

    É preciso fazer um resgate da pluralidade de narrativas e representações que deem conta das nossas formas de lidar com as grandes questões da humanidade para além desse repertório restrito. Para além da jornada de um herói pasteurizado.

    Neste sentido, quais referências plurais precisam vir à tona?

    Leia mais – [Primeiras impressões] A Jornada do Escritor: é bom conhecer, mas também dizer não às fórmulas

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