Lars é um cara tímido que vive no quintal da casa de seu irmão. Todos ao seu redor se preocupam com a sua solidão e sofrem porque é sabido que ele é um homem bom. Ele não consegue ter contatos próximos com os outros, chega até a sentir dores físicas com o toque alheio. Por isso, ele está sempre correndo das pessoas. Então, ele resolve tentar uma coisa diferente. Lars sente que lhe falta uma parceira. Decide comprá-la pela internet. Bianca, uma boneca de plástico, torna-se a sua namorada. Essa fábula é a história do filme A garota ideal, no original Lars and the real girl, filme canadense de 2007 e disponível na Amazon Prime Video.

    Porém, essa inusitada decisão do personagem principal não foi o que me provocou a escrever esse texto. De fato, nem chega a ser tão surpreendente assim. Muitos outros filmes já lidaram com algo parecido, por exemplo, o excelente Ela (Her), de 2014. O mais chocante do filme, pra mim, foi como a cidade lidou com o fato de que Lars (Ryan Gosling) estava namorando uma boneca, que inclusive tinha sua própria história: Bianca tinha uma enfermidade que a havia deixado numa cadeira de rodas, era metade brasileira, não falava muito bem o inglês e, portanto, conversava pouco.

    Aceitar o inaceitável?   

    Após a natural estranheza inicial, a pequena cidade escolheu aceitar a decisão de Lars. Aquilo que podia ter sido o mote para dissecar a maldade humana e encher a tela de gente chamando o Lars de louco, fazendo piada com ele e tentando curá-lo a qualquer custo – até mesmo com violência -, deu lugar a uma desconcertante opção amorosa. Lars era um homem bom e agora estava feliz. Toda a cidade entrou no “delírio” do personagem e tratou Bianca, a brasileira, como se ela fosse, de fato, sua namorada de carne e osso.

    Ela almoçava com a família, fazia passeios românticos e frequentava as festas dos (poucos) amigos de Lars. Na verdade, eles aceitaram Lars porque Bianca era parte de sua cura. Em uma reunião com os representantes da igreja da cidade, quando Lars decidiu levar sua namorada de plástico à missa, eles discutiram se isso seria ou não possível. O padre resolveu a questão da seguinte forma: “bom, como sempre, a solução é… o que Cristo faria?”.

    a garota ideal
    Cartaz de “A garota ideal”. Divulgação.

    A garota ideal me emocionou e, ao mesmo tempo, me provocou. Nos primeiros minutos do filme, eu ria com o desconforto da situação, mas aos poucos fui, também, aceitando aquele universo. Ao fim, estava me perguntando o que eu faria se fosse comigo. Não como se estivesse no lugar do Lars, mas na posição, por exemplo, da adorável Karin (Emily Mortimer), cunhada de Lars, que não pensou duas vezes e entendeu que Lars precisava de carinho e compreensão, não de julgamento.

    O desconforto amargo que eu sentia era… se fosse eu, será que eu teria a mesma paciência e força que Karin? A partícula “e se…?” abre um abismo na nossa frente. Essa pergunta hipotética nos lembra que sempre somos os responsáveis por nossas escolhas. Se nos perguntamos “e se…” é porque podia, ou pode, ser diferente.

    “Prefiro não”

    Fazendo uma breve digressão – justificável, eu espero -, gostaria de falar também do famoso conto Bartleby, o escrevente, de Herman Melville (leia a resenha aqui). É bastante conhecida a história do escrevente que, sem aparentes motivos, resolveu não fazer mais nada, ou como ele mesmo dizia: “prefiro não”. O narrador, que não tem nome, conta a história desse seu funcionário que, num primeiro momento, cumpria muito bem sua função, mas foi aos poucos se negando a tudo, até a comer.

    Me peguei pensando “por que ele não manda esse cara embora e se livra do problema?”. Mas aqui, também, o personagem/narrador se nega a abandonar o seu funcionário. Ainda que na história de Bartleby seja muito mais difícil de ver isto que estou chamando de opção amorosa, ela aparece como uma postura prévia, meio invisível, que se nega a desacreditar do outro. Até o fim, o outro merece uma nova chance; até o fim ele pode fazer diferente e renascer.

    (fim da digressão, com um adendo: não conheço nada melhor que a arte para fazer esse exercício de alteridade.)

    O que significa dar uma chance ao amor?

    É desconcertante se deparar com a possibilidade de escolher o amor. Em A garota ideal, se o filme tivesse ido pelo caminho de mostrar como as pessoas foram cruéis com um rapaz que estava passando por um processo de dor, ele seria classificado como um filme realista. Mas, como a obra escolheu o caminho da compreensão amorosa, é quase uma fantasia. É compreensível, afinal, hoje, poucas coisas são tão cafonas quanto o amor. Que palavra! Tão aberta a significados e tão fechada a definições; e não há uma pessoa sequer que não saiba o que ela é.

    O fato é que o amor é uma experiência radical que transforma a todos. Em A garota ideal, o personagem mais cético é Gus (Paul Schneider), irmão (!) de Lars. Mas, quase no final, assistimos a ele abrir a porta do quarto de Bianca durante a noite para se certificar que ela estava bem. Ok, isso tudo funciona muito bem em filmes e contos. Fosse naquilo que chamamos de vida real e essa “opção amorosa” seria coisa de idiotas. O que queremos urgentemente é mudança e justiça; desejamos que a justiça iguale o jogo, enquanto que o amor requer paciência, compreensão e – o mais difícil de todos, porque assimétrico – o perdão. Definitivamente, é coisa de idiota.


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