A internet proporciona possibilidades, entre elas, conhecer pessoas que possuam os mesmos gostos por determinada arte, por exemplo, o meu caso, a literatura. É claro que na nossa vida fora da rede isso também acontece, porém a internet, se bem usada, pode ser um facilitador de conhecimento. Digite seu livro preferido no Google e veja o que acontece.

    Porém, como toda história, se há muitas possibilidades fáceis de chegar ao conhecimento, esse caminho pode ser recheado de aprendizados falsos, ou pior: de pedras falsas que, infelizmente, a maioria saboreia como a última bolacha do pacote. Vamos a um exemplo: Clarice Lispector, a escritora mais falsificada nas redes sociais ao ponto de ao verem o nome dela creditando alguma frase ruim, a expressão seja algo como tomar um café temperado com sal.

    Eu quero escrever em letras grandes, eu quero colar outdoors na cidade inteira para dizer: essa sua frase de auto-ajuda não é Clarice Lispector! A Clarice Lispector nunca disse essa tosquice sobre amizade, amor e ser feliz!

    E eu quero repetir um milhão de vezes adicionando palavrões diferentes a essas minhas frases revoltadas, mas corro o risco de, ao final, receber como resposta a frase “A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena – Clarisse Vispector”.

    Posso chorar? Posso chorar muito como uma criança que foi ao supermercado e pediu a sua mãe o melhor chocolate do mundo e recebeu uma jaca?

    Clarice Lispector, a deusa

    O mundo é lindo, mas também é essa merda presente todos os dias (essa frase poderia ser de Charles Bukowski, mas é minha mesmo). Nós, que apreciamos LITERATURA e não frases, LIVROS BENS ESCRITOS e não frases, CITAÇÕES FORMAIS e não frases, sofremos demais com essa disseminação falsa do que é a literatura. E lamento também por todos os outros escritores que sofrem com isso: Caio Fernando Abreu, Shakespeare, Luis Fernando Veríssimo, Virginia Woolf, etc, etc, etc.

    Quem são os compartilhadores de frases falsas? O que eles representam? Para onde vão? O que fazem? As respostas são fáceis, pois tenho certeza que ao ler essas perguntas você imaginou avatares de colegas seus de Facebook, Twitter e similares. É, são eles e vários sites e blogs.

    Vinicius Linné, escritor, professor e mestre em literatura, registrou o seu desabafo no Papo Literário sobre o que foi feito com o nome Clarice Lispector, a profética (e você já vai entender porquê):

    Eu já presenciei no Face uma página da “Clarisse Linspector” recebendo comentários voltados à autora. Como se ela estivesse toda viva e lépida mantendo aquele perfil – com o nome errado – e escrevendo baboseiras sem tamanho. 

    Pobre Clarice… Profética Clarice

    “Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo”. {Clarice Lispector em carta escrita a uma amiga 3 anos antes de sua morte}

    Pior de tudo é que você que realmente conhece e estuda o trabalho do Caio [Fernando Abreu] ou da Clarice – como é o caso da minha dissertação de mestrado – acaba passando por farinha do mesmo saco dessa gente que nunca leu um livro deles na vida e só fica compartilhando frase falsa. Aí você comenta que o seu trabalho é sobre a Lispector e ouve de volta “Ai, eu também adoro as frases que a ClariSSE coloca no Facebook.”

    É de matar.

    Clarice Lispector tinha uma escrita peculiar, diferente, original e difícil, quem já leu – atentamente – alguns livros dela, é capaz de reconhecer o texto escrito por um dos maiores nomes da literatura. É como saber que aquela sua amiga tão elegante e fina jamais cantaria uma música de Michel Teló. As redes sociais fazem Clarice Lispector cantar Michel Teló.

    Essa massa compartilhadora de frases nas redes sociais nunca leu, de fato, o livro onde contém a tal frase. Compartilha porque é legal, é fácil e porque quer parece cool. Um reflexo do quanto nossa sociedade é alimentada por superficialidades.

    Eu desconfio das frases óbvias, simples e fáceis demais, elas não representam a literatura, tampouco Clarice Lispector. Eu desconfio de frases sem referências e fora de contexto. Só acredito em frases compartilhadas por pessoas que conheço muito bem ou se conter o livro de onde a frase foi retirada, a página, editora e ano de publicação. Se não for, é mentira, e eu não quero fazer parte dessa estupidez com a imagem da literatura, minha arte preferida, onde a Clarice Lispector canta o melhor da música erudita.

    Onde comprar livros de Clarice Lispector: Amazon

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    7 Comentários

    1. Christian Costa on

      Achei magnífico esse post! Li e continuo lendo Clarice e sei que temos que entender a profundidade da alma e a revolta que ela põe em suas obras. Essa pieguice que postam no face não é Clarice… tudo são comentários ignorantes de pessoas ignorantes. Chega até ser um assassinato colocarem citações e trechos dela e dos demais escritores -principalmente Woolf e Plath- que por causa disso deves estar se remexendo na cova.

    2. Francine, parabéns! Sou uma grande admiradora da obra de Clarice, que é meu ídolo. E sofro da mesma doença por ver Clarice tão desrespeitada ao lhe creditarem tanta frase de porta de banheiro.

    3. Por outro lado, há algo de positivo! Alguém que nunca tinha ouvido falar em Clarice Lispector, por exemplo, pode se deparar com tais frases e acabar por buscar mais informações. Quem sabe ler algumas de suas obras.

    4. Puxa vida, música erudita? Coitada da Clarice, que tanto procurou escapar do rótulo de intelectual, cult, e sei lá mais quantos apartheid culturais.

    5. Bem, o aspecto livresco apresentado no artigo (pedante, talvez, por querer personificar Clarice apreciadora de MPB) não ajuda muito no impasse. Talvez os ‘claricianos’ de carteirinha emitida pela bacharelesca ABL fizessem por bem difundir a verdadeira, sem criar um gueto intransponível.

      ”Clarice Lispector tinha uma escrita peculiar, diferente, original e
      difícil, quem já leu – atentamente – alguns livros dela, é capaz de
      reconhecer o texto escrito por um dos maiores nomes da literatura.” Sim, Virgínia Woof se revira no túmulo ao ouvir isso, não desmerecendo Clary e sua legião de fãs (os com carteirinha da ABL e ou mortais)

      Já vivemos tempos decadentes de literatura, onde os embates soporíferes nas feiras e bienais já não atraem ninguém, com o pernóstico perneta então, o fim está próximo. Que deixem os rococós de lado e divulguem a Clarice como ela era – sem firula, sem erudições, sem estrelismos, sem pedantismos.

      Aquela que dizia que ‘escrevia porque gostava’ e não ‘porque havia sofrido um trauma, etc’, isso em resposta a uma entrevista do Vox Populi da TV Cultura dois anos antes de morrer (procurem no michel-telônico YouTube, crianças). Uma escritora totalmente ante ‘indie-jovenzinha incompreendida’ dos cursos decadentes de Letras que vagem por aí à sombra de uma penumbra inexistente.

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