Ascensão social, ambição, adultério e exploração material e moral são os temas do romance Quincas Borba, de Machado de Assis.

    Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.

    Quincas Borba. Machado de Assis

    O primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Quincas Borba é um convite à leitura. Machado de Assis introduz nas primeiras linhas a história do professor de Barbacena que inesperadamente recebe a herança do amigo Quincas Borba, um filósofo cuja morte é descrita em Memórias Póstumas de Brás Cubas. A fortuna vem com a incumbência do herdeiro de cuidar do cachorro Quincas Borba, o mesmo nome do dono.

    A Fuvest

    O romance integra a lista de leituras exigidas para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona os candidatos a ingressar nos cursos da USP. 

    Quincas Borba

    Quincas Borba foi publicado em 1891, entre o lançamento de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, e Dom Casmurro , de 1899, trilogia que inovou a literatura brasileira, introduzindo o Realismo. “Nesse romance, Machado de Assis mostra pleno domínio da escrita. Constrói situações e personagens inesquecíveis, como Sofia e Rubião, transitando pelo trágico e pelo cômico com toda a maestria”, comenta Hélio de Seixas Guimarães, professor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “É um dos pontos altos do romance brasileiro, escrito com sensibilidade, inteligência e talento raro em qualquer tempo e lugar.”

    Os leitores vestibulandos vão acompanhar as aventuras e desventuras do ex-professor e novo capitalista que parte de Barbacena para o Rio de Janeiro. “Rubião encontra um mundo muito diferente daquele da sua província natal”, conta Guimarães. “Na condição de novo-rico, ele começa a alimentar sonhos de grandeza e torna-se vítima tanto da sua própria ambição e da sua imaginação desenfreada como da avidez e da crueldade dos falsos amigos que o cercam.”

    O leitor pode atentar para as conexões entre esse enredo e a circunstância histórica e social do Brasil da segunda metade do século 19.

    Como em todo grande romance, Quincas Borba, segundo o professor Guimarães, possibilita vários níveis de leitura. “Há a história do triângulo formado por Rubião e pelo casal Cristiano e Sofia Palha, que se baseia na sedução de Rubião por Sofia e no adultério que não se realiza. O casal Palha é movido pela ambição material e pelo desejo da ascensão social.”

    Outro nível a ser observado é a história dos usos do amor e da sedução para fins de exploração moral e material do outro. “E assim se dá, porque depois de ter toda sua fortuna sugada pelo casal Palha e por outros falsos amigos, Rubião é descartado por todos.”

    Há ainda mais um nível de leitura a ser examinado. “O leitor pode atentar para as conexões entre esse enredo e a circunstância histórica e social do Brasil da segunda metade do século 19, já que o casal Palha encarna os valores de uma nova ordem, a do capital financeiro”, observa. “Cristiano Palha é caraterizado como ‘zangão da praça’, um tipo de especulador financeiro, que surge no Brasil num momento em que a escravidão continua em plena vigência. Ou seja, o romance, cuja ação se passa entre 1867 e 1871, pode, e acho que pede, para ser lido como uma crítica à conjunção terrível entre novas e velhas formas de exploração.”

    O romance também mostra, segundo destaca Guimarães, o processo de depauperação e enlouquecimento de Rubião. “Ao final, ele retorna a Barbacena, material e moralmente destruído, coroando-se imperador antes de morrer ao lado de seu cachorro, Quincas Borba, que foi tudo o que lhe restou.”

     O cachorro Quincas Borba, que aparece como o guardião das ideias do seu finado dono, o filósofo amalucado Quincas Borba, chama a atenção para os absurdos contidos na filosofia do ‘Humanitismo’.

    O romance suscita alguns questionamentos. O que o casal Cristiano e Sofia representa? Qual é a simbologia do cão Quincas Borba no romance? O professor Hélio de Seixas Guimarães cita um dos primeiros leitores de Quincas Borba, o crítico Araripe Júnior, que, em 1893, lançou uma pergunta, referindo-se a Rubião: “Quem nos diz que esse personagem não seja o Brasil?”.

    Associando o romance ao momento atual, Guimarães observa que a ingenuidade associada aos delírios de grandeza, a ignorância e confusão mental e o modo como Rubião se deixa explorar por interesses escusos podem ser lidos como alegorias do País. “Nessa linha de leitura, os conectadíssimos e inescrupulosos Cristiano e Sofia Palha representariam uma modernização que se aproveita de tudo o que há de pior na velha ordem”, comenta. “O cachorro Quincas Borba, que aparece como o guardião das ideias do seu finado dono, o filósofo amalucado Quincas Borba, chama a atenção para os absurdos contidos na filosofia do ‘Humanitismo’, criada por Quincas Borba, que é uma mistura brasileira de teorias importadas, tais como o darwinismo social, o positivismo e várias formas de determinismo que serviram, e ainda hoje servem, para justificar e naturalizar grandes barbaridades.”

    Na visão de Hélio de Seixas Guimarães, “o romance é muito atual na medida em que mostra como os indivíduos se relacionam uns com os outros como coisas, números, cifras e, mais recentemente, como algoritmos”. Guimarães destaca: “A combinação disso com outras modalidades de exploração e violência ainda tem muito a dizer nos dias atuais”. O livro Quincas Borba foi publicado por diversas editoras em todo o País. Guimarães recomenda o acesso ao www.machadodeassis.net. “Esse site traz todos os romances de Machado de Assis em hipertexto, com acesso gratuito. Quincas Borba tem aí uma edição muito bem cuidada e acompanhada de notas que podem ajudar bastante na leitura.”.

    LEIA TAMBÉM: A Cartomante: um conto de Machado de Assis


    Fonte: Jornal da USP – texto de Leila Kiyomura

    Share.