Donna Tartt é conhecida por seus prólogos marcantes, mas o de A História Secreta deixou uma sombra a ser sobrepujada pelos seus sucessores no que toca à inovação.

    Já no início da obra, na segunda linha do prólogo, Tartt avisa o leitor, por meio do narrador e personagem, Richard Papen, quem irá morrer no livro; ou seja, o livro começa com um “spoiler”, que é um termo relativo, já que o que será de almejo para o leitor descobrir a partir de então, não será quem morreu, mas as razões e os fatos que desencadearam tal acontecimento. De fato, Tartt reduz o poder da morte neste caso, já que na segunda linha de um livro de quinhentas páginas, é um pouco complicado afeiçoar-se a algum personagem qualquer a ponto de sentir por sua morte.

    Naquele dia, discutia-se a perda do ego, as quatro loucuras divinas de Platão, a loucura em suas diversas manifestações; ele começou a falar sobre o fardo do ego, como o chamava, e o motivo primordial que levava as pessoas a desejar a perda do ego. ‘Por que uma vozinha obstinada, dentro de nossas cabeças, nos atormenta tanto?’, disse, olhando em torno da mesa. ‘Quem sabe por nos lembrar de que estamos vivos, de que somos mortais e possuímos uma alma individual – que nos amedronta tanto entregar e, no entanto, nos leva ao desespero, mais do que qualquer outra coisa? Não é a dor, porém, que nos dá consciência do ego? É terrível descobrir na infância, que o indivíduo vive isolado do mundo inteiro, que ninguém e mais nada pode sofrer a dor da sua língua queimada ou o joelho ralado, que os sofrimentos e pesares pertencem apenas a cada um. Mais terrível ainda, quando crescemos, é aprender que nenhuma pessoa, por mais que nos ame, pode nos compreender verdadeiramente. Nossos egos nos tornam muito infelizes, e por isso sentimos tanta ansiedade para perdê-lo, não concordam?

    p. 43

    Essa tática nos faz questionar os efeitos do spoiler. Caso alguém pudesse começar qualquer obra do fim da história em direção ao começo, trocaria os alvos daquilo que normalmente seriam as suas surpresas, que agora se encontram no começo, e não mais no fim do livro, que é por onde se está começando a ler. Foi essa artimanha usada por Donna Tartt. Mas ao embarcar nas páginas do livro, me senti num labirinto de espelhos: não sabia onde me situava e frequentemente me contradizia a respeito do que imaginei estar na minha frente.

    O enredo

    O enredo de A História Secreta constitui-se por um grupo de jovens que ao simular um ritual bacante e obter sucesso na execução deste, passam a cometer certas brutalidades para esconder o ocorrido. O que me deixou perdido e confuso é que quando você elimina certos aspectos de uma obra, como Tartt veio a fazer, você precisa engrandecer outros, assim como alguém que perde a visão e tem naturalmente os outros sentidos mais aguçados. E foi a falta dessa elaboração de personagens e suas relações que faltou.

    Como eram seis personagens relativamente principais, cada um à sua maneira, havia uma constante preocupação em informar ao leitor sobre o que os outros quatro estavam fazendo, enquanto o foco era em apenas dois: se esses quatro estavam tomando uma cerveja, indo à aula; era um constante The Sim de atividades. Os romances na obra me soaram mecânicos e obrigatórios, como se fosse um item na lista de exigências de camarim feita por algum cantor que apenas checaria se tal item está presente e nada mais.

    Eu não sei como está a sinopse na edição original de “A História Secreta”, mas o fato de haver uma menção sobre o mal informado episódio bacante na história inutiliza uma vasta gama de trechos em que a autora tenta enraizar um mistério na trama sobre que diabos determinada parte do grupo estaria fazendo pra se comportar de tal maneira diante do novato do grupo, o narrado da história, Richard Papen.

    Becos sem saída

    Um outro beco sem saída com o qual me deparei foi a morte que Tartt provocou ao inutilizar os efeitos da brevidade humana na segunda linha do primeiro parágrafo do livro que ela tão engenhosamente criou, ao final deste.

    Mas às vezes eu via um sinalizador quando olhava para o céu, do chão do labirinto de espelhos. Permanecem marcante as também conhecidas situações agonizantes que até hoje só senti enquanto li Donna Tartt (embora muito mais presentes em O Amigo de Infância), além de ter me identificado imensamente com um personagem, o único dentre todos (tão mecânicos) da história que foi profundo, retratou tão bem a ação devastadora do desespero e da ausência humana, que também é um personagem que morre.

    Uma personalidade assim se desintegra quando analisada. Só pode ser definida pela anedota, pelo encontro fortuito ou pela frase entreouvida. As pessoas com as quais jamais dialogou de repente se lembravam, com uma pontada de afeição, de o terem visto atirando um pau para o cachorro pegar ou roubando tulipas do jardim de um professor. ‘Ele entrava na vida das pessoas’, disse o reitor da universidade, inclinando-se para segurar-se na tribuna com as duas mãos; e embora ele repetisse a mesma frase, do mesmo jeito, dois meses depois, no serviço fúnebre em homenagem à caloura (que se deu melhor com uma lâmina de barbear do que com as frutas envenenadas), no caso de Bunny, pelo menos, era verdadeira. Ele realmente entrava na vida das pessoas, na vida dos estranhos, de um modo inteiramente imprevisto. Foram elas que realmente lamentaram perdê-lo – ou perder quem julgavam que ele fosse – com um sofrimento não prejudicado pela falta de intimidade com seu objeto.

    p. 356

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