Todo aquele jazz é uma mescla de fatos biográficos com uma certa imaginação. E, cá entre nós, vai ter imaginação e conseguir transportar tanta beleza pro papel lá em New Orleans!

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    Sempre ouvimos falar para não julgar um livro pela capa, mas se o livro for “Todo Aquele Jazz” (Geoff Dyer, Companhia das Letras (240 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen) , não haverá erro algum. Tem por si só um convite à leitura a belíssima fotografia da capa: um negro sob um filtro azulado, soltando fumaça de seu cigarro com o pescoço inclinando pra baixo como que a tocar um instrumento. Um olhar mais desatento poderia enxergar um sax em sua boca, tanto quanto um atento poderia colocar um piano sob seu olhar (e me desculpem se meu lado não tão aprofundado assim sobre jazz não permite identificar se trata-se de algum determinado artista conhecido).

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    Quem é Geoff Dyer?

    Geoff Dyer esteve recentemente da FLIP (Feira Literária Internacional de Parati) falando sobre seu livro e também sobre a arte de escrever ensaios, e quem o ouviu dizer que escrever ensaio é algo como escrever redação na escola, e leu seu livro, deve ter ficado no mínimo perplexo ao imaginar o tipo de aluno que ele deve ter sido na escola. Caso contrário, é muita humildade de sua parte. O autor faz questão de deixar clara a maneira como idealizou a obra. Uma mescla de fatos biográficos com a maneira como ele imagina que as coisas possam ter acontecido. Agora, cá entre nós, vai ter imaginação e conseguir transportar tanta beleza pro papel lá em New Orleans.

    A narrativa é feita intercaladamente. Em primeiro plano, uma viagem de carro de carona com Duke Ellington ao lado do saxofonista Harry Carney. A narrativa pausa e então somos transportados para junto às diversas lendas do jazz com as quais passamos agradáveis momentos ao longo do livro, e sempre ao terminar de falar sobre um, voltamos à estrada com a dupla já citada e assim sucessivamente.

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    Narrativa e repertório

    Um trovão rimbou na escuridão. Gotas de chuva respingaram no para-brisa e logo um temporal os envolveu. O vento silvava pelos campos, galopeando o carro de lado. A chuva tamborilava na capota. Harry olhou para Duke, vergado no assento e de olhos postados na estrada. Os faróis dos carros que vinham em sentido contrário estouravam como fogos de artifício na água que escorria do para-brisa. Eram precisamente episódios desse tipo que acabavam, de uma forma ou de outra, em sua música. (pág. 72)

    O repertório de personagens é vasto. A começar por Lester Young, sua dramática passagem pelo exército. Uma delas muito tocante, na qual um sargento lhe obriga por ser negro a tirar de seu armário a fotografia de uma moça branca, humilhando-o em frente a outros soldados, mesmo este afirmando que se tratava de sua esposa. Young nunca mais foi o mesmo após a guerra, segundo o autor: “um pesadelo do qual ele nunca havia despertado”.

    Ser músico de jazz era produzir um som pessoal, descobrir um jeito de ser diferente de todo mundo, nunca tocar a mesma coisa duas noites seguidas. Já o Exército queria que as pessoas fossem as mesmas, idênticas, indistinguíveis, parecendo ser iguais, parecendo pensar igual, que tudo permanecesse igual dia após dia, que nada mudasse. (pág. 23)

    O que quase todos os músicos de jazz tiveram em comum e talvez sejam ali que se encontrem os momentos mais belos relatados no livro, foi o fato de terem vivido dramas pessoais e degradações que na maioria das vezes resultaram em um fim precoce. Temos o retrato de um Chet Baker desdentado, envelhecido, com os olhos endurecidos e derrotado. O próprio Lester Young e seu vasto repertório de drogas acumulado com o fator guerra que acabaram com ele. Charles Mingus, seu pavio curto, gigante com seu contra-baixo, anos mais tarde tomado pela doença mental.

    Uma bela dedicação à música

    Cada parte dedicada a cada músico é encerrada de uma maneira sensacional. Dyer foi completamente feliz ao escolher as palavras, mesmo afirmando que estas lhe faltam para descrever tamanha admiração por seus ídolos jazzistas – fato que muito provavelmente o leitor irá de discordar, assim como eu.

    O livro ainda conta com um posfácio chamado “Tradição, Influência e Inovação”, com uma escrita mais acadêmica sobre a evolução do jazz, a forma como um músico cita ao outro em meio aos seus solos e composições, e como estudar linearmente, principalmente de maneira que vá do mais recente em direção às raízes, é possível encontrar características de um músico na obra de outro e perceber assim a evolução do gênero.

    Por último, uma discografia selecionada pelo autor, a qual eu particularmente utilizei como base para criar uma “playlist” com alguns grandes discos indicados, como acompanhamento da leitura. Foi uma experiência fantástica. Mais um livro daqueles que se sente uma pena muito grande ao virar a última página. Todo aquele mais puro jazz.

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