minha-luta-novoA vida comum e nada espetacular de um norueguês narrada em detalhes. Eis o resumo, a grosso modo, do que é a série “Minha Luta” escrita por Karl Ove Knausgård e que conquistou o público e a crítica, transformando-se num curioso fenômeno. Curioso porque não há nada de especial na vida do escritor que auto-ficcionaliza sua história. Sem grandes reviravoltas, sem cenas de tirar o fôlego. É apenas a sua vida, às vezes irritantemente monótona, que encontramos no seu calhamaço dividido em seis volumes.

Editado no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Guilherme da Silva Braga direto do norueguês, a autobiografia ficcional – ou, no uso do termo mais corrente, auto-ficção – de Karl Ove destrincha sua própria vida de forma crua, revelando uma existência com todas as contradições e reflexões que ela pode carregar. E isso fica nítido com a vinda à lume do quarto volume da série, Uma temporada no escuro. Enquanto o primeiro volume, A morte do Pai, Karl fala de períodos diversos e não-cronológicos da sua vida, no segundo, sob o título Um outro amor, retrata detalhes do seu casamento e da experiência da paternidade, e no terceiro, A ilha da infância, fala do seu tempo de infância e da conturbada e dúbia relação com seu pai; no quarto volume, Uma temporada no escuro, o recorte temporal é da sua fase jovem, saindo da adolescência, com seus recém chegados dezoito anos, e com a responsabilidade de saber lidar com todas as decisões que vai precisar fazer a partir daí.

O desejo maior de Knausgård desde sempre foi poder exercer a profissão de escritor. Ou melhor, de ser um grande escritor, escrever uma grande obra e fazer desse o ofício sua vida. Contudo, aos dezoito anos os recursos – financeiros e de experiência – ainda são parcos e diminutos. Para ter a mínima estrutura e conseguir dinheiro e tempo para dedicar-se ao ofício da escrita, Karl Ove cumpre um rito comum em seu país: passar um ano dando aula numa comunidade isolada – a escolhida localizava-se ao norte da Noruega no frio vilarejo de Hafjord. Um lugar onde “o silêncio não era opressor, era aberto.” E foi nesse local que o jovem Karl Ove pôde viver a definitiva experiência de poder tomar rédeas da própria vida: teria responsabilidades profissionais, precisaria conduzir bem o espaço de sua casa e ter disciplina suficiente para não perder o foco em escrever.

Estúpido engano. Como quase todo jovem dessa idade, Karl Ove oscilava em dois mundos: o sexual e o alcoólico. No segundo ele meteu o pé na jaca – e isso bem antes dos dezoito. O livro não segue uma ordem linear e fica intervalando períodos de tempos distintos, porém todos interligados. É nesses pulos temporais que descobrimos as dificuldades de Knausgård com o sexo oposto e a sua intensa vontade de poder logo transar – e as fatídicas mentiras de experiências falsas que contava aos amigos para não se passar por virgem. Ao mesmo tempo nos condoemos da sua extrema falta de experiência com tudo na vida e as decisões precipitadas que toma. Essa sua extrema dificuldade com as garotas fica patente quando ele diz:

“Eu via as garotas como criaturas das quais era absolutamente impossível se aproximar, como se fossem quase anjos, eu adorava quase tudo o que dizia respeito a elas, desde as veias na pele translúcida dos pulsos até a curvatura das orelhas, e se eu percebesse os contornos de um peito debaixo de uma camiseta ou uma coxa desnuda por baixo de um vestido de verão era como se tudo se desprendesse no meu âmago, como se tudo começasse a girar, e o desejo enorme que se erguia nessas era leve como a luz, leve como o ar, nele havia uma promessa de que tudo era possível, não apenas aqui, mas em toda parte, e não apenas naquele instante, mas para todo o sempre.”

Na gana de se entender e ser um escritor, Knausgård tem sua primeira experiência de escrita resenhando discos para um jornal local. É nessa sua incursão pelo jornalismo musical que faz sua ainda vacilante carreira de escritor enfim ter um pontapé inicial. Nesse ínterim ele vive sua vida como todo jovem: tomando decisões equivocadas. De festas malfadadas – com direito a semi-destruição da casa da mãe – à surtos melancólicos no seu período em Hafjord, Karl Ove nos capta pela sensibilidade com quem vai narrando os acontecimentos da sua vida. É nisso que mora a real beleza dessa sua luta. Esse quarto volume é a apresentação crua e viva da vida de um jovem que não dimensiona nada do que faz e que tem uma ideia fixa na cabeça – enquanto oculta a outra numa outra cabeça -, que é escrever. Para isso se dispõe a qualquer tarefa.

A força da prosa de Knausgård suprime o debate do que é real ou não na sua narrativa. Essa não é a preocupação principal que o leitor precisa ter diante da leitura. O que importa ali é a experiência da vida e de como às vezes ela pode ser plena ou simplesmente um buraco vazio no nada existencial:

Em determinado momento desse processo eu desapareci para mim mesmo. Não para Jan Vidar [dos melhores amigos do escritor], que continuava a me ver, claro, e quando falava comigo ele sempre ouvia uma resposta, então achou que estava tudo bem, mas não estava, eu tinha desaparecido, eu me sentia vazio, eu estava no meio do vazio da minha alma e não sei descrever o sentimento de outra forma”.

Por trechos com essa pungência que nos vemos hipnotizados pelo texto do norueguês. Segue-se por suas quase quinhentas páginas – média de cada volume – como se elas não fossem nadas. Queremos saber mais de Karl Ove, porque a identificação com os seus medos e oscilações de humor, suas decisões erradas, suas contradições, suas atrapalhadas, revelam um caráter essencialmente humano, sem amarras, sem firulas e com uma sensibilidade que nos toca. E mais do que isso, traço esse fortíssimo nesse quarto volume, é a beleza estúpida da juventude que pula a cada página que viramos que nos conquista em definitivo. E a captura da beleza da prosa direta de Knausgård é de um desconcerto deleitoso. Ele nos pega pela mão e mostra que o quanto ignoramos a força da vida.

O romance – ou auto-biografia romanceada – tem um ritmo leve, rápido, e penetrante. Não há divisão de capítulos e a prosa é simples, sem grandes jogos, sem floreios. Simples como a vida de qualquer menino de dezesseis/dezoito anos. O que nos motiva na leitura é saber que aquilo que está ali diante dos olhos é uma obra gigante. Gigante pela forma muito peculiar que Karl Ove Knausgård encontrou de narrar sua vida. E se há trechos de nenhum movimento, de nenhum salto narrativo, é porque a vida também tem seus momentos monótonos e fatigantes. Por isso a leitura de Karl Ove é uma experiência que vale muito a pena: ela é um espelho da nossa própria existência. Ela tem as suas temporadas escuras.

A ideia da escuridão é algo que perpassa todo o livro, muitas vezes nas entrelinhas e outras de forma transparente. Funciona como uma metáfora forte desse momento da vida, em que há muita cobrança e pouca inteligência emocional para se lidar com os desafios que se postam no caminho. A juventude é esse período nebuloso, onde “tudo desaparecia, tudo se desfazia na enorme escuridão em que vivíamos. Nada mais importava, dava na mesma dizer isso ou aquilo, fizer isso ou aquilo.” A beleza inteira do Uma temporada no escuro jaz exatamente nesse ponto, da capacidade de extrair de um momento tão conturbado uma força literária como poucas. Uma leitura, sem a mínima sombra de dúvidas, para a vida.

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2 Comentários

  1. Oi Ricardo,

    Gosto muito do jeito cru que Knausgard narra sua vida, como você mesmo falou.
    Acabei de ler o segundo volume e já comprei o terceiro, estou achando viciante acompanhar a história do autor. Agora, fiquei ainda mais curiosa pra chegar no quarto volume e conhecer mais o Knausgard jovem, que apareceu de leve no “A morte do pai”. 🙂

    Beijos,
    Mel

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