A maioria de nós terá um ramo da artéria coronária bloqueada, após os 60 anos. Mas não será a maioria que desenvolverá algum tipo de problema específico em decorrência; isso porque o nosso organismo reage formando um novo caminho para o sangue irrigar o coração, através de novas pequenas artérias, que podem não ser tão eficazes quanto a artéria antiga e detentora da função original, mas que serão suficientes para manter o funcionamento cardíaco. Nosso organismo possui inúmeros outros exemplos de adaptações biológicas que nos favorecem à vida. Somos seres adaptáveis, e essa adaptabilidade é essencial para a nossa sobrevivência.

Sempre Vivemos no Castelo da autora estadunidense Shirley Jackson (1916-1965) é um romance sobre adaptação. As adaptações que somos obrigados a fazer por um capricho do destino, e principalmente por nossas limitações.

O livro nos apresenta a dinâmica de três personagens iniciais que vivem praticamente isolados na mansão Blackwood, do restante da vila. Temos Mary Katherine Blackwood (ou Merricat), a narradora, Constance Blackwood (ou Connie), Tio Julian (também Blackwood), e não menos importante, Jonas, o gato. A família era composta ainda por um irmão mais novo, o pai, a mãe, e a mulher de Tio Julian. Mas como a própria narradora Merricat nos conta “Todo o resto da minha família morreu.” Morreram envenenados. Na sua última refeição, ingeriram um açúcar contendo arsênico. Mary Katherine havia sido mandada para o quarto sem o jantar, de forma que escapou ilesa. Constance, a irmã mais velha, e a cozinheira oficial da família, não usava açúcar no seu próprio prato, além de, após todos terem usado o açúcar, ter visto uma aranha no açucareiro, inseto do qual tem pavor, e, imediatamente jogou fora todo o açúcar e lavou o recipiente com água fervente. Tio Julian sobreviveu, não obstante, sequelas insistiam em leva-lo para o outro lado durante todo o restante de sua vida. Constance foi tida como principal suspeita e julgada pelo crime que provavelmente cometera, enquanto isso Tio Julian ficou em um hospital, e Merricat em um orfanato. Mas Constance foi inocentada, e os três voltaram a residir na mansão Blackwood.

Mas não foi apenas Tio Julian que teria de sofrer sequelas do acontecimento, o restante da família se viu preso ao perímetro da mansão. A vila agora via Constance como a única culpada pelo assassínio da família. Rimas cruéis, que eram cantadas por crianças, foram feitas para acusar e acuar a família aos imites da propriedade Blackwood. Constance passou a ter um verdadeiro pavor de qualquer estranho, assim como tinha de aranhas, e suportava a companhia apenas de Merricat, Tio Julian, e o gato Jonas.

Por seis anos após o terrível episódio, o restante da família possuía como único elo com a comunidade da vila as visitas que Merricat fazia à biblioteca municipal e ao mercado da vila para abastecer a casa de alimentos e livros, necessariamente todas terças e sexta-feiras. Nestes seis anos, uma vida extremamente regrada e reclusa pairava sobre a mansão Blackwood. Tio Julian, já com grande comprometimento de alguns aspectos psíquicos, como por exemplo a memória e o juízo de si mesmo, produzira nesse meio tempo uma infindável quantidade de anotações que repassavam cada detalhe do grande e último dia da maioria de seus familiares. Constance, que ainda continuava uma exímia cozinheira, usava todo seu tempo em preparar os mais diversos pratos para sua família. Merricat, por sua vez, fazia as compras, lia, vagava pelo jardim, enterrava objetos, ou os pregava em árvores, como forma de proteção contra intrusos e principalmente mudanças na sua vida cotidiana.

O narrador em primeira pessoa (Mary Katherine Blackwood) é o que faz da obra tão única. A narrativa de Merricat é obsessiva, claustrofóbica, com um teor de fantástico só não maior que sua capacidade de negar a realidade e desejar a morte de quem quer que atravesse seu caminho e sua até então pacata vida em sintonia com Tio Julian, Constance e Jonas. Um excerto do livro torna bem claro sua personalidade que irá permear e dar a maior parte da vida do romance.

“Meu nome é Mary Katerine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. Volta e meia penso que se tivesse sorte teria nascido lobisomem, porque os dois dedos médios das minhas mãos são do mesmo tamanho, mas tenho de me contentar com o que tenho. Não gosto de tomar banho, nem de cachorros nem de barulho. Gosto de minha irmã Constance, e de Richard Plantagenet, e de Amanita phalloides, o cogumelo chapéu-da-morte. Todo o resto da minha família morreu.”

Merricat é uma personagem muito peculiar; nenhum outro personagem consegue se conectar a ela, a menos que ela tente se conectar primeiro. Há inúmeras passagens extremamente desconfortáveis em que ela ignora completamente atitudes de outros personagens que tentam lhe ferir tanto verbal como fisicamente. É absurdamente imaginativa, e para ela, se adaptar foi e sempre será muito fácil. Sua percepção da realidade e das repercussões de suas atitudes nem sempre lhe ficam claras o suficiente.

Mas a própria personalidade até mesmo mística de Merricat lhe possibilitou vislumbrar uma mudança que estava prestes a ocorrer. Está mudança chegará juntamente com a visita do primo Charles, que irá impor um novo estilo de vida à família Blackwood. E Merricat estará disposta, a seus mais inusitados modos, a manter a dinâmica familiar já existente.

“Sempre Vivemos no Castelo” é um livro, acima de tudo, sobre como nós nos adaptamos aos mais escuros e recônditos cantos – muitas vezes cruéis – de nossa própria mente.

(Imagem em destaque: Capa da versão americana, da Penguin Classics)

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