Em Solar, o leitor irá encontrar a mesma profundidade temática, o cuidado com histórias humanas que são trágicas em função de um ambiente igualmente trágico e aparentemente imutável.

Indubitavelmente com a coroa de maior escritor inglês contemporâneo, Ian McEwan já não precise provar nada, e quem sabe nunca nos tenha provado. Os muitos prêmios literários, entre eles o Booker Prize de 1998, e um sem-número de exitosas críticas ao longo de uma carreira de trinta e cinco anos ficam muito aquém de sua genialidade narrativa. Os leitores apaixonados pelo romance “Reparação” são unânimes ao considerá-lo sua obra-prima, e, por que não?, dividem uma derrelição silenciosa e absoluta desde a leitura do mesmo. “O Inocente”, “Sábado” e “Na Praia”, sucessores quase esmagados pela sombra deixada por ele, foram três longos suspiros de descanso de lá para cá, mas não menores em termos de qualidade narrativa, vocabulário e estrutura ficcional. Então parece que “Solar”, novo romance de Ian que chega agora (2011) ao Brasil com tiragem inicial de 12 mil exemplares pela Companhia das Letras, tenta retornar ao estado de semi-perfeição laboriosa das páginas de “Reparação” – não com a mesma poesia imagética, nem com o mesmo lirismo britânico de uma época sangrenta em que guerras e romances pareciam pares perfeitamente lógicos, mas com a mesma profundidade temática, o cuidado com histórias humanas que são trágicas em função de um ambiente igualmente trágico e aparentemente imutável.

“Solar” é dividido em três partes bem-distribuídas e ascendentes (como em “Reparação”), sendo a primeira narrada no ano de 2000, a segunda no ano de 2005 e a terceira em 2009. Por dez anos acompanhamos o desenlace tragicômico da vida de Michael Beard, um físico ganhador do Prêmio Nobel que para além dos cinquenta obesos e etílicos anos de idade, está entregue ao que o destino lhe apresentar, inclusive mulheres e oportunidades de se reafirmar profissionalmente enquanto sua vida pessoal desmorona e o modifica. Talvez o melhor anti-herói criado por McEwan, Beard é a personificação de uma comédia de desastres incontornáveis, ou propositalmente não-contornáveis, apresentada logo nas primeiras linhas com a maior honestidade possível:

“Ele pertencia àquele gênero de homens — vagamente feiosos, quase sempre carecas, baixos, gordos e inteligentes — que exercem uma atração inexplicável sobre certas mulheres bonitas. Ou achava que pertencia, o que parecia ser suficiente para transformar o desejo em realidade.”

Assim tem início a primeira parte do romance, com um Beard casado há cinco anos com Patrice, sua quinta esposa, e ciente de que ela tem um caso com Rodney Tarpin, apresentado ao leitor antes do próprio nome como o “sujeito que fizera uma reforma na casa deles”. O pedreiro é o oposto extremo de Beard, com massa muscular demais e encefálica de menos, escolha perfeita para Patrice ultrajar o marido cujo sentimento de culpa diante de seus próprios onze casos extraconjugais é completamente nulo. Pela primeira vez o físico sente a dor da traição, ao mesmo tempo em que tenta desenvolver um projeto de energia renovável a partir dos ventos. Cansado das ostensivas saídas de Patrice, Beard chega a fingir uma amante, o primeiro dos muitos pontos cômicos do livro: enquanto ela está no quarto, ele desce a escadaria da casa fingindo outros dois passos com as mãos espalmadas nos degraus, além de imitar gritinhos e risos femininos de dentro do quarto onde então dorme sozinho. Ambos continuam nesse recíproco e amargo silêncio, Beard conhece Tom Aldous, jovem cientista que o admira e quer mudar seu conceito de energia eólica para energia solar, quando a iminência da primeira de muitas pequenas tragédias se cristaliza e o inesperado modifica o desenvolvimento da história. O projeto de Tom, muito mais elaborado e estudado, atravessa com certo rancor os ouvidos do ganhador do prêmio Nobel, que descarta, previamente, qualquer coisa que dê muito trabalho. A energia eólica como melhor opção de sustentabilidade parece sempre levar algum entrave em seu funcionamento, mas na segunda parte do livro encontramos um novo Beard, possuidor dos fundamentos de seu admirador e inteiramente à vontade com a energia solar, descartando os ventos, seu ideal primário.

Ainda na primeira parte há o mais inusitado do livro, o que mais se comenta entre leitores: quando Michael Beard, convidado a ir ao polo norte com um grupo de cientistas e entusiastas para “ver o aquecimento global com seus próprios olhos”, aprende a andar de skidoo e numa frustrante e agoniada vontade de urinar em meio à imensidão branca com temperaturas negativas, prende o pênis no zíper de seu macacão externo, congelando-o. A imagem dura poucas páginas, numa mistura de humor desesperado e tragédia metafórica, afinal o que está em jogo é a perpetuação de seu destino falocêntrico.

Cinco anos depois, a segunda parte do romance se mostra menos transitória do que a primeira, com poucas flutuações narrativas e uma inflação do destino ignominioso de Michael Beard. Aqui há um foco maior, ainda que sempre toldado por uma densa atmosfera de ironia, na questão do aquecimento global. Em uma conferência sobre energia, Michael apresenta todas as suas ideias sobre a importância da energia solar para uma plateia composta de investidores institucionais, gerentes de fundos de pensão, e importantes empresários que sequer querem cogitar a hipótese de que estão correndo risco com uma fonte de lucro que os pode destruir no futuro caso continuem arraigados em sua comodidade de petróleo, gás, carvão e madeira. Para beneficiar a atual empresa em que trabalha, conseguir que seu projeto de energia solar se consolide e se torne realidade em todo o mundo, Michael deslinda diversos fatos sobre o perigo do aquecimento, os benefícios da energia fotovoltaica, inclusive com inteligentes exemplos tomados descaradamente de Tom Aldous, no tempo em este insistia para que ele desistisse da energia eólica. Michael se torna mais gordo, mais cansado, já não mora com Patrice no “quartel-general de sua infelicidade”, mas esporadicamente com outra mulher, Melissa, que o ama como uma criança desesperada pela presença carinhosa do pai. Além disso, começa a encarar um perturbador melanoma no pulso e a iminente chegada de sua primeira filha.

Dentro de um único parágrafo da segunda parte, na página 208, McEwan descreve integralmente a personalidade de seu anti-herói:

“Beard compartilhava confortavelmente todos os defeitos da humanidade, e ali estava, um monstro de insinceridade, amparando no braço com carinho uma mulher que imaginava poder abandonar em breve, ouvindo-a com uma expressão sensível na expectativa de que dali a alguns minutos teria de falar também, quando tudo que queria era fazer amor com ela sem preliminares, comer a refeição que ela cozinhara, beber uma garrafa de vinho e então dormir — sem a menor culpa.”

Não há como não achar catastroficamente engraçado, sobretudo pelo uso de “garrafa” em vez de “taça”, porque é isso que Michael Beard é, a despeito da física e do Nobel: um incurável mulherengo calvo e gordo que se satisfaz apenas com sexo, comida e bebida.

Já na terceira parte, numa viagem aos Estados Unidos, Michael está prestes colocar seu projeto de energia fotovoltaica em vigor, fornecendo eletricidade a toda uma pequena cidade na fronteira com o México. Mas também, antes disso, Ian descreve um pouco do passado do personagem, quando ele ainda era um jovem cientista, não “um burocrata cansado e falido” como agora. O passado dá lugar à inauguração da rede de placas solares num evento que atrai os meios de comunicação do mundo todo, e a um só tempo reaparecem os fantasmas da vida de Michael Beard, como sua ex-mulher, Tarpin, o amante da ex-mulher, e também sua amante atual, que apesar de presente, não passa de uma fantasmagoria cômica e insistente de seu pulsante desejo sexual em outro continente.

Pode-se descrever “Solar” como uma ininterrupta comédia de erros e desgastes psicológicos. Seu trunfo está no alinhamento de suas principais bases: a inevitabilidade da decadência do mundo em que se vive e do próprio mundo.

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1 comentário

  1. Tanto o livro Solar como a matéria sobre ele do site fora fantásticos. Eu ia até pedir pra ser colaborador do site, mas depois de ter lido o texto acima fiquei até com vergonha.

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