É necessário aquietar pensamentos e parar com julgamentos e conjecturas rebeldes sobre tudo e todos para desenvolver o “olhar do coração”, livre do peso de querer ter ou reter qualquer coisa…

Maria viu a vizinha no jardim e perguntava-se o que fazia ela passeando, ao invés de trabalhar. Para o carteiro no portão, a mulher no jardim tomava sol, usava short e blusa decotada para fixar vitamina D. No entanto, a moradora da frente achou indecente uma mulher madura vestida assim; de baby-doll! A filha, que observava da janela, achava que a mãe tinha ido colher salsinha na horta.

Já o netinho sabia que a avó apreciava o perfume das flores. Quanto ao mendigo na calçada, levou um susto quando reparou na sombra da mulher rodando não longe de si. Imaginou um fantasma vindo agarrá-lo! Mas Djanira, este era o nome da senhora no jardim, tinha saído de casa para refrescar a cuca. O clima na sala estava pesado!

Assim, todo mundo reparou em Djanira no jardim, porém cada um colou sobre a cena vista suas ideias, impressões, dúvidas, desconfianças, seus pensamentos, medos, preconceitos, julgamentos de certo ou errado e sabe-se lá o que mais, que carregava dentro de si. Só o cachorro não pensou nada!

Também ninguém viu Djanira de verdade. Cada um definiu e projetou em sua realidade a Djanira de sua cabeça, com estas ou aquelas características, comportamentos, intenções e tudo mais. Aparentemente, as pessoas vivem em mundos distintos. Pois, diante de uma mesma cena, um fenômeno ou acontecimento qualquer, um vê uma coisa, outro percebe outra, e surgem interpretações diversas.

O que seria a realidade de verdade?

A princípio, quando estudamos a fisiologia dos sentidos, observamos que todo estímulo que nos chega por esses órgãos passa por um processamento. A informação captada pelas células sensitivas é interpretada no cérebro, gerando representações, criando memórias e imagens na nossa mente. E cada um interpreta de um jeito, em função de experiências já vividas, de desejos, expectativas, crenças, humores, condicionamentos e tudo que compõe sua bagagem pessoal. Agregamos às informações que nos chegam através dos sentidos a nossa análise, compreensão, perspectiva e escala de valores.

Então, o que seria a realidade de verdade? Certamente, nenhuma das versões particulares criadas pela mente das pessoas. Mas, talvez, todas elas ao mesmo tempo! O universo compreenderia, então, uma infinidade de bolhas oníricas possíveis coexistentes e entrelaçadas, e a maioria das pessoas estaria na sua viagem pessoal, correndo atrás de seus interesses, lidando com suas confusões, leituras tendenciosas da realidade e criações mentais, sem realmente enxergar muito além de seu mundinho particular.

O estado natural de simples observador

Talvez seja difícil para alguns se manter no estado natural de simples observador, que aparece na luz do olhar dos seres inocentes. Porém, a possibilidade de alcançar o estado contemplativo existe para todos.

Por fim, é necessário aquietar pensamentos e parar com julgamentos e conjecturas rebeldes sobre tudo e todos para desenvolver o “olhar do coração”, livre do peso de querer ter ou reter qualquer coisa, e então se curar de projetar seu mundo na tela perfeita do mundo real.

Christiane Couve de Murville é doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em psicodrama e orientação profissional. Tem dupla nacionalidade, brasileira e francesa. Publicou a trilogia “A Caverna Cristalina” e o “A vida como ela é”, no Brasil e na França, o “Até quando? O vai e vem” e o “Até quando? A prisão”, além de livros e artigos acadêmicos. Com experiência artística em escultura e cerâmica, ela também é a ilustradora de suas obras.



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