A República, de Platão, escrita aproximadamente em 375 a.C, é conhecida como uma das grandes obras da filosofia ocidental Antiga, considerando o fato da obra reunir diversas questões platônicas, a saber: sobre o conhecimento, ontologia e ética. Não entrarei na discussão sobre ser esta uma obra da maturidade ou intermédia – entre a juventude e a mocidade -, pois para os fins deste texto esse é um debate secundário. A intenção, aqui, é demonstrar a relação entre o que é justiça, pergunta que move o Livro I da obra, e a crítica à poesia feita nos Livros II e III. Primeiramente, buscarei sintetizar as questões relevantes sobre a definição de justiça no Livro I, depois trarei da crítica à poesia nos Livros II e III, relacionando ainda com a crítica do livro X, e, por fim, associarei a questão da justiça com a crítica feita pelo filósofo.

    O debate sobre justiça em A República

    O debate acerca da justiça é central para toda a obra, não em vão ocupa o primeiro livro e perpassa as discussões dos livros seguintes; Alguns até consideram que um outro nome possível para a obra seria Sobre a justiça. Antes de entrar no debate sobre a definição de justiça, é importante destacar que Platão, ao buscar uma definição, preocupa-se com a natureza da coisa (physis), isso significa que perguntar “o que é” insere uma exigência universal (comum). É com base nessa busca ontológica que o autor analisa as definições de justiça que aparecem no Livro I.

    A discussão acerca da justiça começa quando Sócrates é convidado à casa de Céfalo, um velho, que expressa a satisfação dos justos por sua idade avançada. Ele coloca a primeira definição de justiça que consiste “[…] em falar a verdade e restituir o que recebemos de outrem” [1]. Porém, logo se vê diante da primeira questão feita por Sócrates: se um homem guardar a arma de um amigo e ele a pedisse de volta em um estado alterado, seria justo devolvê-la? Questionamento que demonstra que restituir a cada um o que se recebe não é sempre viável. Neste momento, coloca-se outra definição de justiça: “[…] dar a cada um o que lhe é devido […]” [2]. Como disse no início, a cada afirmação, Sócrates busca verificar o significado, nesse caso de devido, que é contraposto à ideia de que só se dá ao inimigo o que convém, o mal. A busca pela conceituação continua, a partir do diálogo socrático, até uma das definições mais relevantes, que segue sendo examinada nos demais livros, oferecida por Trasímaco: “[…] o justo é sempre e em toda parte a mesma coisa: a vantagem do mais forte” [3].

    A definição de Trasímaco é oposta ao que pensa Sócrates, isso porque ele era sofista [4] e toda sua definição é elaborada a partir dos governos que vigoram no período. Em contrapartida, Sócrates está buscando uma definição de justiça para a cidade imaginada – para o modelo de cidade perfeita que Platão propõe [5]. Em decorrência dessa busca, ele vai até o argumento da função para encontrar o que é próprio da justiça. Nesse ponto, há consonância entre Trasímaco e Sócrates, porque o primeiro concorda que, como cada sentido humano (visão, audição, etc.) tem sua função, a atividade de cada coisa é aquilo que ela faz sozinha ou com mais perfeição que qualquer outra [6].

    Toda essa discussão ocorre para saber se são mais felizes os justos ou os injustos, porque, na definição de Trasímaco, seriam os injustos mais felizes; na de Sócrates, o oposto. A partir do argumento da função, a justiça é uma virtude da alma e, portanto, a injustiça seu defeito: “Assim sendo, a alma e o homem justo viverão bem, como viverá mal o injusto” [7]. Porém, essa definição não é final. Sócrates termina dizendo que, sem saber o que é justiça, não se pode compreender “[…] se é ou não uma virtude e se quem a possui é feliz ou desgraçado” [8].

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    Crítica à poesia

    A questão da felicidade do justo e do injusto, que fica em aberto no fim do Livro I, é o pontapé do Livro II. Glauco e Adimanto retomam o argumento de Trasímaco para tratar sobre a felicidade, porque eles querem saber quais os efeitos da justiça na alma: 

    “Recapitularei a argumentação de Trasímaco, a começar por definir o que, na opinião geral, é a justiça, e por dizer de onde se origina; de seguida, mostrarei como todas as pessoas que a praticam o fazem a contragosto e por obrigação, como se não se tratasse de algum bem, mas de um mal necessário; terceiro, que essas pessoas se comportam com coerência, pois é muito melhor, segundo dizem, a vida do homem injusto do que a do justo, conquanto, Sócrates, não seja essa a minha maneira de pensar.” [9]

    Enquanto na definição de Trasímaco a justiça é um bem alheio, porque nunca traz esse efeito para quem assim age; para Sócrates, a virtude (areté) é pensada com relação à função. Devido à relação entre função e natureza, na cidade as tarefas devem ser distribuídas conforme as habilidades de cada homem. Desse modo, a justiça é dar aquilo que é devido, mas esse devido é diferente do proposto por Trasímaco, já que, em Sócrates, refere-se ao geral e não ao particularizado. O exemplo do médico, recorrente na obra de Platão, torna a questão mais clara. Conforme explica Sócrates, o médico cumpre sua função porque trata e não simplesmente porque ganha dinheiro, logo, a função do médico é tratar do paciente.

    Sendo a cidade paralela à alma, seu governo deve ser como o governo da alma, portanto justo. Pensar na justiça da cidade é compreender a propriedade do governante. Ele guarda a cidade, na qual se faz necessária a educação. Nessa linha, o guardião (governante) cuida da cidade e da felicidade, sendo indispensável a justiça para se fazer educação. A proposta de cidade platônica é de um governo dos melhores, o que significa justiça da alma e boa educação.

    A educação na Antiguidade Clássica ocidental tinha dois segmentos principais – música e ginástica – sobre os quais o autor trata no segundo e terceiro Livro. A crítica à poesia insere-se a partir do propósito de uma boa educação. Mas o que deveria ser a educação justa na cidade saudável [10]? A música referia-se à alma e a ginástica ao corpo, as duas dimensões que, segundo o autor, compõem os seres humanos. Tendo a poesia um importante lugar na educação grega, a crítica no Livro II se relaciona ao que a poesia deve dizer sobre deuses, a partir de poetas como Homero e Hesíodo. Platão afirma que os discursos dela podem ser verdadeiros ou falsos, sendo que a boa educação não deve conter as mentiras, nem as maldades dos deuses, expressas pelos poemas. Antes, a boa educação deve selecionar a poesia utilizada para mostrar apenas atos bons e benéficos dos deuses, pois, assim, formam-se os homens.

    No Livro III, ao tratar sobre a poesia, a preocupação é sobre o que se deve dizer acerca dos homens. Na cidade saudável, cada homem desempenha a função para a qual tem talento (especialização). Aprofundando a crítica à poesia, os mitos devem ser selecionados e a única mentira assegurada é a bela mentira, que somente o governante pode usar. Ora, como pode haver mentira na educação justa? Segundo o filósofo, só se admite a bela mentira, porque ela possui algo de verdadeiro. Portanto, na cidade justa, para que os homens tenham uma boa educação, que há séculos se aprende com os mitos por meio de Homero e Hesíodo, a poesia deve ser selecionada.

    Essa crítica continua a ser aprofundada, a ponto que, no Livro X, Platão diz que os poetas não devem ser aceitos na cidade por conta da imitação, pois o belo em si não pode deixar de ser belo e a educação é modelada conforme os cuidados com a alma, sendo que ela guia o corpo para as virtudes (equilíbrio, temperança, etc.). Resumindo, enquanto se critica a mentira da poesia nos Livros II e III, aceitando-a desde que selecionada, no último livro ela deixa de ser aceita, porque não tem utilidade para a cidade imaginada e poderia até causar danos às pessoas virtuosas.

    Poesia e justiça

    Na cidade imaginada por Platão, a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido, entretanto esse devido está relacionado com a função, ou seja, da justiça enquanto uma virtude própria da alma. Sendo a justiça essa virtude, é preciso uma boa educação, que só é possível com uma crítica (perspectiva dos Livros II e III) ou com a expulsão (Livro X) da poesia. Na primeira crítica que aparece em A República, em que a poesia deve passar por uma purificação retirando o que não é bom para o caráter, verificamos que, junto com o ideal de cidade, há um ideal de homem: “Logo, Deus é perfeitamente simples e verás, tanto em atos como em palavras, e não só não muda de forma como não engana os outros por meios ilusórios ou por discursos, nem por sinais de sua parte durante o sono ou na vigília.” [11]. O primordial nesse projeto de cidade é que os homens se aproximem o máximo possível dos deuses.

    Todavia, no Livro X, a poesia não é mais admitida, por estar comprometida em sua própria natureza da imitação do real. A primeira crítica se faz pelo conteúdo da poesia; a segunda, por sua natureza, que, como já dissemos, tem relação com a função, sendo os efeitos da imitação para a alma distintos do efeito da verdade que o conhecimento possibilita. Na concepção da obra, o filósofo é aquele que ama o bem e o belo real – o saber -, por isso ele é o guardião perfeito da cidade.

    O bem – o justo – é próprio do divino no humano, por esse motivo, ele não pode ser imitação (mímesis) como na poesia. Finalizarei com um dos exemplos do autor: a função do pastor é cuidar das ovelhas; a do médico é cuidar dos pacientes; bem como do guardião perfeito é zelar pela cidade e pela felicidade, sendo necessário, para isso, dar aos guardiões uma educação modelar, pois o conhecimento é o antídoto contra o injusto, o mal e a mentira.


    [1] PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000. 331c.

    [2] Idem, 331e

    [3] Idem, 338e-339a.

    [4] Os sofistas, de modo básico, estão preocupados com a retórica (persuasão) e não com a verdade como propõe a filosofia platônico, isso porque, para eles, o real não é apreendido pelo saber humano. Uma das críticas de Platão a eles se dá quando introduzem questões éticas. Mesmo Sócrates ressignifica a sofística, na obra Fedro, ao dizer que o dever do orador é dizer a verdade.

    [5] “[…] no caso de acompanharmos em pensamento [imaginação] a formação de uma cidade, não assistiremos, no mesmo passo, ao processo de nascimento da justiça e da injustiça?”. PLATÃO, op. cit., 369a.

    [6] Idem, 353ab.

    [7] Idem, 353e.

    [8] Idem, 354c.

    [9] Idem, 358c.

    [10] A comparação com a medicina é recorrente na obra, já que a saúde pode ser interpretada como uma metáfora para a justiça.

    [11] PLATÃO, op. cit., 382e.


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