2020 foi o ano em que descobri o prazer de ler contos, essas histórias mais curtas que, às vezes, podem ser lidas no prazo de um dia, ou de uma semana e, ainda assim, causar impacto.

    Sei que muitas pessoas não se identificam com ou não gostam de contos, principalmente em razão da limitação de caracteres que estão à disposição do escritor para apresentar seus personagens e enredos, o que deixa em alguns a sensação de que não passaram tempo suficiente com os personagens.

    Mas não é todo ano, e não é todo escritor, que consegue fazer sair da cartola uma Elena Greco e Lila Cerullo, protagonistas da série napolitana inaugurada com Minha amiga genial, cujas histórias e personalidades podem ser desenvolvidas ao longo de vários volumes. E há que se dizer: é preciso ter muito talento para conseguir, em poucas linhas, fechar a história de uma vida ou dar relevância a um episódio, a um dia, na vida de uma pessoa.

    Então, este post é dedicado aos meus cinco contos favoritos de 2020. Vamos lá?

    O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman

    Logo nos primeiros meses do ano, em um domingo de final de verão e começo de confinamento, descobri Charlotte Perkins Gilman com seu papel de parede amarelo. Havia lido sobre ela aqui na Livro e Café, e uma amiga tinha me dito que seria uma candidata a se tornar uma das minhas leituras favoritas. E ela estava com a razão. Foi no momento em que me vi isolada dentro de casa, olhando sempre para a mesma parede, que precisei procurar por palavras que conseguissem retratar essa situação.

    Como apresentei no podcast sobre essa obra, o conto é narrado em primeira pessoa, por uma protagonista não nomeada, que passa as férias de verão com seu marido em uma mansão colonial. Tendo recentemente dado à luz a seu filho, a mulher apresenta sintomas depressivos e, ao longo da narrativa, vai se vendo confinada em um quarto que possui um papel de parede amarelo horrendo, que a observa em qualquer lugar onde esteja.

    Com traços de literatura gótica, o conto é também uma apresentação dos tratamentos psicológicos à disposição das mulheres consideradas histéricas e neurastênicas no final do século XIX. Se você sentiu que em 2020 sua sanidade esteve prestes a sair pela janela, esse conto é para você!

    A marca na parede, de Virginia Woolf

    Outro conto que posso considerar como parte da minha leitura de confinamento foi A marca na parede de Virginia Woolf, que também possui resenha aqui na revista. Nele, outra protagonista-narradora também não nomeada, está em casa, sentada na poltrona de sua sala, e relata uma noite como aquela em que viu, pela primeira vez, uma marca não identificável na parede. Essa situação abre as portas de sua percepção e dispara um fluxo de pensamentos, aparentemente desorganizado, sobre a vida, a morte e o além-morte.

    Um dos primeiros contos escritos por Virginia Woolf, é considerado um de seus primeiros experimentos com a linguagem, antes de se tornar a consagrada escritora modernista que daria vida à O quarto de Jacob, Mrs. Dalloway e As ondas. Considerado por alguns um ensaio filosófico mais do que um texto ficcional, nesse conto encontramos a defesa de Woolf de que as mulheres têm o que pensar e seus pensamentos sobre patriarcado, guerra e as convenções sociais são dignos de se tornarem objetos da literatura.

    E se você gosta de Woolf, vale a pena ler A marca na parede, seguido de Kew Gardens e An unwritten novel, pois os três contos, publicados na mesma época e escritos como uma forma terapêutica de recuperação da depressão que a acometera, são lindas meditações sobre nossa percepção sobre os objetos, sobre o tempo, o espaço e a vida de um personagem.

    Bartebly, o escrevente, de Herman Melville

    Essa pequena história estava esquecida na minha lista de livros a serem lidos há, pelo menos, cinco anos e finalmente conquistou o lugar de leitura concluída em 2020. Outra recomendação de um amigo, Bartebly é um personagem conhecido pelo mote de sua existência, expresso na frase “preferia não“, ou, em inglês, “I´d prefer not to“. Por conta dessa frase atribuída ao escrevente, sempre imaginei que o conto fosse uma ode à procrastinação. Afinal, quantas não foram as vezes em que não me vi aceitando realizar aquele trabalho, ou mesmo cumprindo aquele prazo, mesmo querendo muito dizer: “Olha, agradecida, mas preferia não fazer…“.

    Portanto, achei que Bartebly tinha algo de valioso a me ensinar. Mas não. O conto trata de muitas coisas importantes, mas não diria que uma delas seja sobre a arte de procrastinar. Sem aviso, me vi diante de um escrito sobre a desumanização no ambiente de trabalho, e sobre a falta de sentido que recai sobre algumas pessoas e profissões que, como cartas mortas que não chegam a seu destino final, vão perdendo o propósito quando se veem diante de muros de ordem social e mesmo espacial. Quantas também são as vezes em que tentamos nos comunicar, que tentamos mudar de emprego, que buscamos uma vida melhor e nos deparamos com portas fechadas, com muros, com a quantificação da vida, e acabamos nos tornando aqueles próprios muros incomunicáveis?

    Então, sem perceber, com Bartebly completei o ciclo de contos que me alertaram para a importância do cuidado com a saúde mental e de se atentar para aquele limite bem tênue entre o não quero como forma de proteção, de se colocar limites, e o não quero como sintoma de uma depressão que pode aparecer, diga-se de passagem, em isolamento ou em meio a outras pessoas.

    Sonny’s Blues, de James Baldwin

    James Baldwin foi, para mim, a grande descoberta deste ano. Nunca havia ouvido falar desse autor, e de repente o vi citado por toda a parte. Encontrei esse texto quando comecei a procurar por contos ambientados ou dedicados ao universo do jazz e Baldwin é, sem dúvidas, uma das maiores referências. E que referência! Foi um ativista pelos direitos civis em um EUA onde ainda prevalecia uma espécie de apartheid social. Lutou ao lado de Malcoln X e Martin Luther King Jr, escreveu letras para canções de Ray Charles; registrou os sofrimentos originados do preconceito que ainda leva a movimentos bem atuais de denúncia de desigualdades e maus tratos contra a população negra norte-americana.

    Sonny’s Blues foi escrito em 1957, justamente no momento em que o escândalo de Little Rock ficou conhecido, quando a menina Elizabeth Eckfort, imortalizada numa foto de jornal, ousou ir para uma escola de brancos e foi perseguida por meninos que a ridicularizavam. E é sobre o sofrimento e a brutalidade de uma vida quase condenada ao fracasso e a falta de perspectivas de que trata Sonny’s Blues.

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    Mas trata de muito mais. Conta a história de um professor de matemática do Harlem que descobre, por uma notícia de jornal, que seu único irmão está preso por porte de drogas. E é essa notícia que lança o protagonista a uma universo memorialístico que nos permite acompanhar o blues de Sonny e de seu irmão. Anos de desentendimento separaram os dois, e é somente quando a filha do narrador morre que ele, imerso em sofrimento, retoma o contato com Sonny, prestes a sair da cadeia, e relembra a promessa feita à mãe de que cuidaria de seu irmão.

    Acompanhamos o presente e o passado de vidas sem futuro, permeadas por tristezas, mas também que buscam redenção na música. É um conto para ser lido. E relido. E quem gostar, pode aproveitar e embalar com Eu não sou seu negro, documentário que retrata os sonhos, a vida e a força da narrativa e do ativismo de James Baldwin.

    Come rain or come shine, de Kazuo Ishiguro

    Esse conto também apareceu na minha frente nas pesquisas para as leituras sobre inglês, literatura e jazz. Eu já conhecia o talento do Ishiguro desde Vestígios do dia. Sim, eu sei. Eu também penso em Anthony Hopkins e Emma Thompson quando falo (ou escrevo) esse título. E o filme é bom mesmo, mas o estilo de escrita desse escritor nipo-britânico me arrancou suspiros por dias. Então, quando comecei a ler Come rain or come shine, sabia que viria coisa boa por aí. E não me decepcionei.

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    Come rain or come shine é uma história que se desenvolve em torno da música homônima cantada por Ray Charles, pelas divas Billie Holiday e Sarah Vaughan e por tantos outros grandes nomes, e tem como início o amor de Roy e Emily por essas músicas americanas desde os tempos de universidade no sul da Inglaterra, quando sentavam em seus dormitórios perdidos em sons e discos de vinis. Mas o tempo passou e agora Roy, um homem de mais de 40 anos, leva uma vida medíocre na Espanha, onde é professor de inglês. Até que uma visita aos amigos Emily e Charlie em Londres tem consequências inesperadas.

    Enquanto vemos Roy se envolver em uma situação desastrosa, somos mergulhados na memória, no amadurecimento, e na nostalgia que resulta do encontro com aqueles que partilharam de sonhos e desejos de vida, mas que se veem engolidos pela vida mentirosa dos adultos. Come rain or come shine é um conto para pessoas que têm uma memória musical, que se permitem rir e se emocionar com letras e músicas que deixam marcam em suas histórias e invadem o ar com aquele cheiro de nostalgia próprio de uma tarde de chuva.

    E no seu 2020, quais foram os contos favoritos? Nos deixe seu comentário!


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