Mosaico de memórias mostra a potência da escrita de Han Kang em “Atos Humanos”

    É 18 de maio de 1980.

    Cai a tarde em Gwangju, uma pequena cidade na região norte de uma Coréia do Sul sequestrada de seus direitos desde meados dos anos cinquenta. Será possível ouvir os passos, cheios de bravura, daqueles que caminham pelas ruas tomadas pelo povo? Gwangju é do seu povo e não de um general qualquer que, como em uma “dança das cadeiras” política, livrou-se do homem que o antecedeu e sentou-se, cheio de si, no poderoso trono de poder democrático daquele país.

    Ao som agudo dos tiros, todos se viraram e começaram a correr […] O sangue, que se espalhou a partir da barriga, lhe cobriu o torso em um instante. Não há mais bravura nos muitos pés que disparam, sem rumo, em fuga. Em meio ao barulhento desespero, faz-se o silêncio do luto.

    atos humanos

    O dia seguinte está esvaziado de fôlego e repleto de cadáveres. Dongho, o estudante secundarista que, como os demais, partiu o mais depressa que pôde para longe dos manifestantes abatidos pelas balas, procura por seu melhor amigo. Naquele momento final, em que viu Jungdae desaparecer em meio à multidão, ele precisou decidir entre tentar resgatá-lo sob uma saraivada de disparos ou salvar a si mesmo de uma morte certa. Quem teria julgado seu ato nada decisivo para a sobrevivência de Jungdae?

    A consciência, porém, é uma outra história. O ato de partir, de deixar-se ir por medo, tremula em sua mente como a chama das velas que ele acende para os corpos decompostos dentro do Sangmuguan*, corpos tão despejados de vida quanto o de seu amigo que, embora ele não saiba, jaz na floresta, em um pagode de mortos nada sagrado. Há uma ressonância entre o ato de abandonar e, posteriormente, o ato de resistir, de cuidar dos caixões, de identificar cada defunto dentro do ginásio. Não à toa Han Kang batiza sua obra de “Atos Humanos”.

    Atos que constroem a História

    Atos Institucionais constituem ditaduras. Atos humanitários salvam vidas. Atos (manifestações) unem pessoas em prol de uma causa em comum. Todos eles são realizados por homens e, por isso, torna-se fácil concluir que são os atos humanos que constroem a História.

    Como o ecossistema de pequeninas formigas, uma a uma, as nossas decisões diárias sedimentam – em âmbito pessoal e social – a realidade em que nós e os demais vivemos. Não existem leis ou códigos de conduta que tenham o poder de tornar alguém forçosamente leal ou honrado e, como já diziam os pensadores clássicos, a virtude existe enquanto hábito, quando praticada cotidianamente.

    É assim que jovens cheios de vigor e com uma vida inteira pela frente decidem pegar em armas e enfrentar o fim certo que chegaria junto com as batidas de coturno do lado de fora do Docheong**. Da mesma forma, um soldado que recebe a ordem de matar e se nega a cantar o hino nacional, voltando o cano de sua arma para o céu na hora de atirar, sem mirar em ninguém, se antepõe conscientemente a algo. O ato é uma escolha e, por sua vez, a escolha de fazer aquilo que se considera o correto talha para sempre na memória coletiva uma visão da realidade. Coletiva, pois não há decisão que se restrinja à vida de quem a fez.

    A escuridão, a barbárie e o descaso, por sua vez, também resultam de atos humanos. Atos de humanos que, por covardia, fragilidade ou sede de poder, desferem sete doloridos tapas no rosto de uma mulher pequena e desarmada, dizendo-lhe que “Cachorra. Ninguém vai ficar sabendo nada do que acontecer aqui com você, seu lixo”. Sempre achei que se julga o caráter de alguém pela forma como este se porta diante da vulnerabilidade do próximo.

    Dualidade humana

    Diante dessa pintura memorial sobre o Massacre de Gwangju, Han Kang nos lança – com uma delicadeza impossível de se imaginar – a grande pergunta: como é possível que alguns atos tão cruéis e outros tão sublimes possam ser feitos por mãos igualmente humanas? O que isso nos diz sobre aqueles que, com sua alma e existência [os homens], constituem o mosaico da memória? Afinal, estamos diante de um romance histórico.

    Certas memórias não cicatrizam. Em vez de obscurecerem com o passar do tempo, como outras, essas, pelo contrário, permanecem, fazendo apenas as outras memórias se desgastarem lentamente. O mundo escurece como se as lâmpadas se apagassem uma a uma.

    KANG, Han. Atos humanos. São Paulo: Todavia, 2021.

    Poderíamos encontrar um sentimento semelhante entre todos os países da América Latina, que estancam o sangue vertido pelas ditaduras militares até a atualidade, ou em uma Europa devastada no pós-guerra, incapaz de acreditar nas imagens gravadas pelos soldados soviéticos durante a tomada dos campos de concentração nazistas.

    Na obra de Kang, a incredulidade diante do alcance que um ato humano pode ter, para o bem e para o mal, se entrelaça à construção da História como uma grossa corrente. Na voz de uma mãe enlutada que relembra o semblante do filho indo para o colégio e nas mãos trêmulas da mulher que, traumatizada pela tortura e pela vergonha de estar viva, desliga o gravador, incapaz de falar uma única palavra, presenciamos distintos personagens que levam sua vida – ou sua morte – separadamente, mas são impossibilitados de realmente seguir em frente pelo mesmo evento, o ato de 18 de maio de 1980.

    Da mesma maneira, é o nosso ato – também humano – de lembrar, relembrar, registrar, contestar e, finalmente, proclamar, que escreve em linhas tortas o futuro que desponta logo ali, ao dobrar a esquina. A memória é uma forma de resistir assim como o ato humano é a decisão que edifica a realidade.

    É relembrando que Han Kang traz átona perguntas que precisam ser feitas. Do contrário, nossas cicatrizes, humanas, continuarão a sangrar para sempre.

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    *Auditório, ao lado do Docheong, que foi usado para abrigar os cadáveres das vítimas do 18 de maio.

    ** Prédio do governo provincial, o ponto histórico do movimento pró-democracia de 18 de maio.

    [Notas da tradutora Ji Yun Kim]

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